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A delação do diretor de futebol

Chegou ao local marcado 20 minutos antes do combinado. Peito estufado, parecia um pombo humano andando pelo estacionamento, em ziguezague. Apoiou-se no carro e checou o celular. Ligou o gravador do aparelho, pôs a tela contra o peito e conversou com si próprio. Pausou a gravação. Ouviu o conteúdo. Era perfeitamente audível. Deu um sorriso quase diabólico debaixo dos óculos escuros que observavam o restaurante de alta categoria do complexo comercial. Não tinha mais dúvidas de que seguiria em frente com o plano. Sabia que sua carreira no clube estava muito próxima do fim. As palavras da noite anterior, na sala do presidente, ainda ecoavam em sua cabeça após a noite mal dormida.

O time estava em crise no campo. Uma extensão do sufoco financeiro. Gabriel Fernando era diretor de comunicação há pouco mais de um ano. Sua indicação para o cargo causou espanto no meio. Tinha uma carreira tímida, com passagens burocráticas por dois jornais esportivos e duas agências de comunicação. Profissionalmente era limitado. Mas sabia manter a pose. Aproximou-se do presidente ainda candidato. Falou palavras doces, submeteu-se a seus caprichos. Queria aquela vaga na base da adulação.

Tinha consciência de que seria sua única chance de alavancar a vida financeiramente. Conseguiu. E foi à forra. Maltratou ex-colegas, negando acesso a informações básicas. Vazava informações ao bel-prazer para dois prestigiosos colunistas da cidade. Fazia o diabo no cargo. Mas deixou rastros. Aos poucos, vozes chegaram ao presidente indicando o traíra interno. Na reunião, foi achincalhado.

“Seu moleque! Você não era nada. Confiei em você para fazer parte da reestruturação! Minha confiança está por um fio…ainda bem que o Rodo…saia daqui!”, esbravejou o presidente em sua sala, no último andar da sede social.

Gabriel Fernando ficou impactado. Primeiro, pela própria reação. Negou todas as acusações, claro. Mas foi titubeante. Travou. Acabou traído por uma expressão de desespero que não lhe era comum. O presidente, esperto, percebeu. E o atacou como um leão faz com a presa acuada. Foi sangrento. No canto da sala, o vice de comunicação só fez com a cabeça indicando a saída. Era ele sua última boia naquele oceano. Segundo, as últimas palavras do presidente o pescaram. “Ainda bem que o Rodo”. A referência era clara. Foi até descuidada. Fora Rodolpho Afif, o diretor de futebol, o responsável por incinerar sua imagem com o presidente.

“Filho de uma puta, Rodo”, pensou com si próprio Gabriel.

Foi para casa cantando pneus no carro importado comprado com o bônus de renovação de contrato. Uma vida à qual ele jamais teria acesso não fosse a sorte de cair no clube. No futebol, qualquer salário regular suplantava em muito o mercado normal de comunicação. Ligou o rádio e ouviu a mais nova notícia sobre a delação do Governo Federal. Uns empresários do setor agrícola se encontraram com o diretor da Agência Nacional de Minerais e gravaram a conversa sobre os bastidores e propinas. A ideia encharcou a mente de imediato. Se estava prestes a cair, levaria Rodo com ele. Faria uma delação extraoficial, vazando para a imprensa. Acabaria com a carreira do diretor de futebol. A vingança seria triunfal.

Rodolpho Afif chegara ao clube junto de Gabriel. A aparência frágil, esguia, com óculos completando o ar intelectual, indicava um homem de trato delicado. Puro engano. O apelido Rodo não era uma simples abreviação. Indicava a fúria e os rompantes do diretor nos bastidores. Controlava tudo de perto. De passagens de avião a chuteiras utilizadas por jogadores. General Rodo, assim era chamado no vestiário pela boleirada. Punho de ferro. Mas às escalas mais próximas do poder, falava demais. Não escondia que sabia – e havia participado – de negociações duvidosas de jogadores e interferência direta em bastidores. Gabava-se. Costumava rir quando, na tv de sua sala no CT, via algum comentarista novato que jamais frequentara um clube por uma semana dizer que não conseguia acreditar em teorias de conspiração sobre interferências em arbitragens.

“O jogo é jogado, amigos. O jogo é muito mais jogado fora de campo do que dentro de campo. A não ser que queiras ser eternamente um figurante”, disse Rodo, certa vez, diante de Gabriel Fernando e de Rudnei Moreira, assessor do dia a dia do futebol e que por vezes era chicoteado por Rodo.

Ainda no estacionamento, Gabriel viu de longe a chegada do carro luxuoso, modelo do ano. Sorriu de novo. Checou de novo o celular. Seria rápido. O almoço fora marcado com Rodo e Rudnei para alinhar pormenores da comunicação do clube com o futebol. Bem antes do treino, todos se sentaram à mesa. Rodolpho Afif frente à frente com Gabriel Fernando, que tinha Rudnei ao lado como um mero espectador. O diretor de comunicação ligou o gravador do celular e postou o aparelho com a tela virada para baixo, ao lado de um molho de chaves. Cruzou os braços por cima da mesa e, pelo reflexo, conseguia ver se a gravação estava ativada. E iniciou o papo. Perguntou do dia a dia no CT, ouviu lamúrias de Rodo sobre a falta de dinheiro e de conhecimento dos diretores.

“Não sabem porra nenhuma! Só eu sei algo nessa merda, Gabriel! Estamos passando um perrengue filho da puta, ameaçados de cair e vêm sempre me encher com coisas de fora! Porra!”, esbravejava Rodo.

Gabriel Fernando imaginou como seria hilário um flagra do diretor, geralmente mais polido na frente das câmeras, com aquele rompante em meio a palavrões. Para a sorte dele, a mesa era bem afastada, quase incógnita no restaurante. O diretor de comunicação se recompôs. Tentava incitar Rodo a falar mais, sobre o que queria. Algo comprometedor. Levantou a bola, claro, sobre arbitragem.

“E no último jogo, hein, Rodo? Como sofremos aquele pênalti no fim, porra? Não foi nada. Se o meu xará não defende…”, mandou na mesa, diante dos olhares assustados de Rudnei.

A isca foi certeira.

“Porra! Já te falei! Tem que ir Confederação. Eu falo isso porque quem montou todo o esquema de arbitragem pro meu último clube fui eu. Três anos seguidos. Não adianta dar entrevista, mandar email, dvd. No futebol tem de dar dinheiro. Dinheiro! Pegar 100 mil, 200 mil e entregar pros caras. Senão não vai!”, esbravejou Rodo com decibeis tão altos que integrantes da mesa mais próxima se viraram.

Gabriel sorriu e fez concordar com o diretor. Imaginava aquele áudio transcrito na primeira página de um jornal, na capa de um site. Uma hecatombe no clube e no próprio meio do futebol. O diretor teria de mudar de país. Sorriu de novo, mas manteve o silêncio. Sabia que viria mais pela frente. Mas Rudnei interrompeu.

“Tem dançar com a música, né, meu diretor?”, disse o assessor, com aquele jeito de malandro que era motivo de deboche entre os setoristas do clube.

“Claro! Não paga para subornar! É para te proteger, já que todo mundo faz”, completou Rodo.

Uma garfada no filé de peixe, uma bebericada na taça de vinho e Rodo continuou. Agora que tinha começado o desabafo, Gabriel sabia, não ia parar.

“Tem de falar a linguagem da bola, porra. A linguagem! Lembra no Estadual quando foram divulgar manifesto contra a arbitragem? Mas que puta cagada! Tive de ligar para o presidente da Federação. Sabe o que ele disse? ‘Rodo, não é por você, mas eu recebi a carta, limpei a bunda com ela, rasguei e joguei tudo no lixo. Agora vão ver como a banda toca de verdade’. Lembram como foi o segundo turno do Estadual? A gente só tomou porrada! Porrada!”, gritou Rodo, dando um soco na mesa e, de novo, chamando atenção dos outros clientes.

“Rodo, marquei essa reunião para dizer que estamos juntos. As dificuldade financeiras de vocês também são nossas. Estamos alinhados, juntos. Até porque se tudo estourar, a gente sai com a culpa”, completou Gabriel.

“Amigo, sou a favor da correção sempre, do trabalho honesto. Mas todos clubes de futebol têm caixa 2. Aqui faziam antes para roubar. O dinheiro não chegava onde tinha de chegar. Por isso pagamos o preço. Por que aquele grande caiu ano passado? Porque o dinheiro não estava chegando onde tinha de chegar. Aí caiu. Tem de ver a pica que foi pra conseguir montar tudo no meu último clube…agora tá foda. O cara assopra o jogador, é pênalti. É o jogo”, disse Rodo.

O diretor de comunicação se deu por satisfeito. Se fosse cair, ninguém nem lembraria dos vazamentos bobos dele sobre desentendimentos internos, contratações de jogadores e outros pormenores. Só falariam sobre o diretor. Indicou que estava atrasado, pois teria uma reunião com o presidente. Rodo mostrou espanto.

“Vocês não se desentenderam ontem à noite? Que bom que ele vai te receber. Estamos juntos, Gabriel. Vou para o CT. Estou virado há duas noites. Um abraço!”, disse Rodo caminhando em direção à saída.

Gabriel recebeu uma mensagem do vice de comunicação por Whatsapp. “Cheque o e-mail. Lamento. Abs”. No correio eletrônico, a oficialização de sua demissão. Curta e grossa. Sabia, muitos no meio esportivo comemorariam. Tinha colecionado inimigos com a postura de privilégios a determinados profissionais. Mas era Rodo quem iria pagar. Ainda no restaurante, fez o contato com um repórter especial do jornal da Rua São Ramos, 337. Explicou a história e prometia a prova com uma condição: a publicação deveria ser feita em uma semana.

Ainda com o celular em mãos, comprou uma passagem para Salt Lake City, nos Estados Unidos, para dali a dois dias. Teria apenas o tempo de assinar a rescisão e receber o valor do contrato interrompido. Era o suficiente para iniciar uma nova vida próximo do irmão, que já morava nas redondezas há cinco anos. Os pais, já falecidos, ficariam felizes em ver a família reunida, ainda que sob condições duvidosas. Caminhando pelo estacionamento, Gabriel Fernando gritou:

“Clac bum!!!”, para em seguida gargalhar.

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Já há 15 dias em Salt Lake City, Gabriel Fernando ainda se ajustava à vida mais calma em um lugar bem menos badalado do que a tropical cidade brasileira que tinha deixado para trás depois de toda uma vida. Enquanto assistia aos sobrinhos na patinação no gelo, mensagens começaram a pipocar em seu Facebook. Não respondeu nenhuma. Em seu Whatsapp americano, a mensagem do único número brasileiro em sua nova agenda telefônica chegou.

“Clac bum. Sugiro entrar na internet”.

Gabriel Fernando, enfim, estava ansioso. Demorara demais. O contato, no entanto, disse precisar de tempo para ter segurança jurídica e completar a apuração. Abriu o navegador. O dedo quase arranhou a tela do celular com a velocidade tão grande por cima do touchscreen. Estava lá. Com a publicação do trecho de Rodo admitindo seus podres, o diretor de futebol fora demitido por e-mail e, desaparecido, já era procurado pela Polícia Federal. O áudio, devidamente editado apenas com os trechos do cartola, estava disponível ao público. A internet explodia. Uma operação para desmantelar os podres do futebol brasileiro era quase certa, dizia a matéria. Não havia uma citação sequer, em lugar algum, sobre Gabriel Fernando. Tudo estava em cima de Rodo. Observando o vaivém dos sobrinhos com patins, o ex-diretor de comunicação sorriu e gritou:

“Clac bum, Rodo! Clac bum!”.

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