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O atalho da ética do editor Preá

Os olhos semicerrados e o caminhar tranquilo eram características marcantes e conhecidas de Rodrigo Curiex, o Roy, em toda redação da rua São Ramos, número 47. Era sempre comunicativo, as palavras saíam fácil. Às vezes até demais. Mas não naquela noite. O caminhar era apressado, ziguezagueando mesas, sem saber onde repousar. Os olhos, esbugalhados. As palavras um tanto quanto desconexas saindo da boca. Algo grave ocorrera momentos antes. Ele mal podia acreditar. Olhou ao redor e as lembranças encharcaram sua memória.

Dez dias antes, a redação, agora mergulhada em um silêncio pós-fechamento, fervilhava. Três candidatos à presidência de um tradicional clube da cidade se preparavam para um debate na TV do jornal, com transmissão online. Havia discussão e troca de acusações sobre favorecimento da empresa que promovia o debate a um dos candidatos. O Empresário, dono de uma voz fina e que demonstrava nervosismo incomum diante das câmeras, exalava tranquilidade naquele dia. Era o candidato da situação, franco favorito com apoio de um grupo de sócios já influente nos bastidores.

Roy já cobrira algumas vezes o clube. Fazia com orgulho, era também torcedor. O tema sempre o interessara. Mas tentava se manter à parte da eleição. Naquele dia, no entanto, entendeu que algo estava no ar. As notas amplamente favoráveis à chapa do Empresário no diário se tornavam cada vez mais favoráveis com a proximidade do pleito. Os comentários já corriam pela redação e pela cobertura do clube. Nenhuma crítica. Nada para desagradá-los. Apenas levanta e corta. Roy dava de ombros. Naquele agitado dia de eleição, no entanto, ele notou algo diferente no relacionamento de um dos editores com os correligionários do Empresário. Sorrisos, troca de olhares. O editor era Sandro Terra.

Por volta dos 40 anos, já tinha participado de cobertura de clubes em outras publicações, sem nenhum destaque. Por aquelas razões que por vezes é melhor nem saber, tinha pousado como editor. O sorriso era fácil e tentava ganhar os mais jovens na conversa mole, mas agradável. Tentava ser, em suas palavras, “parceiro”. Com os repórteres mais antigos, vivia às turras. Contestava informações, promovia boicotes na escala a quem não o agradava. Era difícil controlá-los, como executava com o seu rebanho doutrinado de novatos. A frustração de uma carreira inexpressiva o afetava. Calculava, sempre, os passos com muito cuidado. Sabia que um deslize poderia custar o cargo. Nos bastidores, pela cabeleira grisalha e pelos olhos sempre encolhidos atrás dos óculos, ganhou o apelido de Preá Míope. O editor Preá. Torcedor fervoroso do clube do Empresário. Estava afoito, ávido pelo fim das eleições. Aqueles dias vinham sendo um tormento.

Dos quatro grandes clubes da cidade, dois estavam sob os cuidados do Preá. Um, do seu coração, tinha sempre tratamento especial, principalmente às vésperas da eleições. Preá se entendia muito bem com os integrantes da chapa do Empresário. Não era raro vê-lo em longas ligações no fim do dia com o diretor de comunicação, Samir, no estacionamento. Quando algum repórter se aproximava, o Preá se afastava, tapando o telefone e a boca com uma das mãos. Apesar do clima quente, o debate transcorreu bem, pouco mais de uma semana antes da eleição.

Roy, então, voltou ao mundo. Não acreditara no que tinha acabado de acontecer. Olhou em volta e procurou alguém para desabafar, longe do Mesão, local onde os editores ficavam. No canto, observou Paulo Touré. Um dos repórteres com mais tempo de casa, era reservado e conhecido pelo jeito ranzinza. Não gostava de meias palavras. Mas ambos tinham um bom relacionamento, trocavam ideias com frequência, principalmente por terem origem francesa. Rapidamente, ele se aproximou do amigo e disparou.

“Paulo, você não sabe…”

“Devo imaginar algo. Poucas vezes te vi assim, andando sem rumo, tresloucado. Desembucha”, respondeu Touré.

“Amanhã é a eleição. Vamos publicar entrevistas com todos os três candidatos. Até aí, normal. Mas o Preá acaba de me chamar no canto e dizer para enviar a entrevista do Empresário para o email do Samir. E disse para ligar para ele depois para ver se está tudo certo, se deseja alguma modificação…”

“Porra, e você fez?”, disse Touré, jogando o fone longe e agora com a atenção totalmente voltada a Roy.

“Tive de fazer. O que iria responder? E nem precisei ligar. Em dois minutos meu telefone tocou e ele exigiu algumas modificações”, disse Roy.

“Você deveria ter se recusado, feito escândalo. Cara, isso é inacreditável. O Preá é muito sujo e tava envolvido com esses caras, todo mundo comenta. Mas isso pega mal para quem trabalha aqui. Como vamos ser tachados de vendidos assim por esse porra?”, disse Paulo, agora com a veia saltando.

Roy concordava, mas estava congelado. Não sabia o que fazer e procurava ajuda. A ousadia do Preá tinha sido demais para ele. A entrevista do Empresário estava contaminada. O jornal já estava rodando na gráfica. Em duas horas estaria publicada na íntegra no site. Era tarde demais. Touré, então, se levantou. Como outros repórteres mais experientes, já tivera seus momentos desagradáveis com Preá. Confrontá-lo ali, abertamente, seria ruim. Por vezes já reclamara com o editor-chefe do jornal, Joca Carvalho, sobre as atitudes de Preá. Panos foram passados, respostas evasivas foram dadas. Evitou acionar Afrânio Sampaio Moscoso, o editor linha dura e explosivo, para evitar um tsunami. Mas a denúncia de Roy era grave.

Procurou, então, o repórter mais experiente da casa. Tinha bom trânsito com o Mesão e a Montanha, como era chamada a área da sala dos diretores do jornal da São Ramos 47. Marcelo Secken já tinha passado por outras grandes publicações e sempre habitava a redação até mais tarde. Assim que Touré lhe passou a história, ele garantiu que levaria o caso adiante no dia seguinte, com Joca Carvalho. E lhe daria o retorno. No dia seguinte, Secken chamou Touré após deixar a salinha de reunião, com a denúncia feita.

“Cara, ele concordou em conversar com o Preá. Mas sabe como é. Nunca temos certeza. Pega mal, mas já fizemos nossa parte. Avisa ao Roy que nos resta apenas aguardar”, disse Secken.

Sobre as mesas repousavam edições do jornal do dia. As três entrevistas estavam lá. Duas com perguntas mais ácidas. A terceira, do Empresário, editada pelo próprio diretor de comunicação, era praticamente um release. Frases feitas, promessas impossíveis e pinta de candidato do futuro. Se aos olhos de um leitor desavisado pareceria estranho, que dirá do restante da imprensa e do próprio meio. No fim daquele dia, o Empresário acabou eleito por grande margem de votos. Preá Míope, sorridente, comemorou a vitória na redação, cercado por asseclas do baixo clero do reportariado. Um triunfo trabalhado por semanas.

A vida na São Ramos 47 andou. Jogos aconteceram, campeonatos terminaram, janelas de transferências foram abertas e encerradas. Três meses depois, Roy deixara a redação. Touré deixara a cobertura de clubes. Marcelo Secken continuava no núcleo de reportagens especiais. Da França, onde realizava cursos de comunicação esportiva empresarial, Roy diariamente acessava suas redes sociais. Em um belo dia, após um caminhar pela margem do Rio Sena e refletir sobre vida e profissão, Roy chegou no apartamento emprestado pela tia. Fez um belo café, puxou a caneca e repousou a mochila ao lado do laptop na sala.

Acessou a rede social. Entre mensagens de amigos, janelas abertas de Touré e Secken, um post com 392 curtidas chamou sua atenção. Era o Preá. Ou melhor, agora era Sandro Terra, diretor de comunicação do clube do presidente Empresário. Sorridente na foto ao lado do mandatário, Preá escrevia que se tratava de um projeto de carreira bem executado. Um sonho alcançado. Emburrado, Roy meneou a cabeça. Jogou a caneca longe, espatifada na parede. Um estrago. Foi até a varanda e no fim de tarde frio de Paris, berrou para espanto dos vizinhos do Quartier de Grenelle.

“Plano muito bem executado mesmo, Preá. De editor a diretor pelo atalho mais fácil, vagabundo. Viva a ética!”

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