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O dilema de Fraldinha e o nascer boleiro do moleque Dudu

Era difícil que não implicassem com ele. Estatura mediana, magro, óculos redondinhos bem postados no rosto, cabelo batido, pose de intelectual e sempre pronto para uma boa briga de argumentações, Miguel Ahssed era visto como bom repórter, mas obcecado pelo futebol de base. De fato, tinha vasto conhecimento, mas se encaixava naquela categoria de acreditar piamente que qualquer moleque era melhor do que o correspondente da posição nos profissionais. Não à toa, ganhou o apelido de Miguel Fraldinha. Depois, só Fraldinha. No início, ficava irritado. Até que se acostumou. Alguns gostavam de chamá-lo, por trás, de Mestre Mimi, referência jocosa ao seu tom professoral em redes sociais e nas resenhas diárias. Sabia tudo de base. Mas tinha certeza que o conhecimento era ainda mais vasto, superior aos dos demais.

A paixão começou cedo, desde moleque, quando acompanhava a Copa São Paulo de Juniores, disputas de base de clubes e seleções e estudava o jeito de cada novato jogar. No papo com os amigos no colégio e na faculdade, tinha tudo na ponta da língua. Mas o ar blasé de Fraldinha logo afastava qualquer chance de papo mais longo. Mais tarde, ainda na faculdade, passou a estagiar em um jornal esportivo já combalido. Ganhou, então, a chance de cobrir a base de clubes para o site. Sabia muito. De posições, características e apelidos a contatos de empresários, familiares e dos próprios atletas. Ali já tinha começado a confundir profissional com pessoal. Se tivesse boa relação, defendia até meia sem grande destaque com afinco. A amizade embaçava a análise.

“Viu o jogo da seleção sub-17 no Torneio de Dakar? Tem um meia-atacante 98, o João Cardoso, o Joquinha, que engole qualquer um no profissional. Se derem chance, souberem fazer a transição. Mas não sabem. É um futebol atrasado, o nosso. E ele ainda sofre no clube, fica lá por amor, essas bobagens. Mas vai voar na Europa”, às vezes dizia Fraldinha sobre um garoto na redação.

Em seguida, ajeitava os óculos, adequava a coluna perfeitamente com o encosto da cadeira e passava a derramar o ar blasé em uma rede social. Mas conhecia muito a base, a molecada. Na nova casa, a redação número 337 da rua São Ramos, vez em outra alguém pedia, ainda que com receio, ajuda do Fraldinha sobre um moleque que saía da base de um clube grande. Ele ficava feliz em destilar todo o conhecimento diante de um setorista, na sua visão, inoperante que só se dedicava aos profissionais do clube. Naquela tarde, no entanto, o pedido era especial.

O editor mais criterioso do jornal, Afrânio Sampaio Moscoso, chegou até a sua mesa para requisitar uma ajuda. Afrânio era exigente demais e suas histórias absurdas, como o duelo com o estagiário Xaropinho, eram lendárias. Era véspera da final da Copa do Brasil e Adaílton, craque do ataque de um dos times, era dúvida para o jogo. Aparentemente, gastara as horas livres da semana anterior com muito sereno e maresia e o músculo posterior da coxa direita não aguentara. Provavelmente, não jogaria, depois de tantos treinos ausente. Afrânio sabia que Fraldinha conhecia Dudu Makelelé, provável substituto de Adaílton. Com 19 anos, o garoto era um atacante com boa técnica, mas que encarava problemas para manter o peso. Para Fraldinha, no entanto, Dudu era craque em potencial pouco aproveitado por conta da mentalidade atrasada. A admiração e o relacionamento mais próximo eram conhecidos, extraoficialmente, no interior da redação.

“Éééééé…Fraldinha, amigo. Manda um zap para o teu camarada. Vê no que ele pode ajudar. De repente damos o furo da semana, cravando a ausência do Adaílton. Que acha?”, perguntou, com olhar ameaçador.

“Vou ver, Afrânio. A gente não se fala mais tanto desde que ele subiu. É craque, tem gestos técnicos sensacionais, mostra intensidade, trabalha no jogo apoiado, finaliza como poucos e…”

“Tá, tá, tá. Sem palestra, Fraldinha. Toca a bola, manda o zap e segue o jogo. Vou estar no mesão esperando”, interrompeu, de pronto, Afrânio.

Fraldinha fez que sim. Assim que o editor se afastou, pegou o celular ao lado do computador. Falava com Dudu todos os dias, sabia de bastidores, ajudava quando podia e já sabia, há alguns dias, que ele deveria jogar. A lesão de Adaílton era grau 2, quase impossível de recuperação em uma semana. Saiu, então, para o estacionamento. Ajeitou os óculos, deu passadas imponentes, majestosas, e mandou o áudio para Dudu explicando a situação. Eram 20h de segunda-feira. O jovem certamente estaria concentrado. Segundos depois, outro áudio aterrisa no celular, de volta.

“Fala, papá! Pô, Miguelito, sabe que tu é irmão, a gente sempre se ajuda. Claro que vou jogar, já te falei. Te contei da discussão de vestiário que teve, Adaílton tá puto, queria ir pro sacrifício. Arrebentou a coxa após um torneio de futevôlei regado a suco gummy e arquibancada colorida. A rapaziada apoiou, mas o homem vetou, todo mundo nas internas já sabe, tá ligado? Mas ele fazer mistério. O Nove (apelido de Adaílton) vai até pro banco. Vou jogar, ele tá no sal. Mas se você liberar isso aí pro teus parceiros da canetinha, me quebra. Vão saber que vazei. Sempre desconfiaram da nossa parceria”, dizia Dudu no áudio.

O repórter suou frio. Destilava sempre sua influência na base, seus contatos e só não dava maiores informações no dia a dia porque poderia prejudicar os garotos. Achava sempre bom poupá-los de uma avaliação ruim, já que logo se provariam, em sua maioria, profissionais bem estabelecidos. E ele, claro, inundaria as resenhas diárias na cantina da Rua São Ramos 337 com seu conhecimento. Mas tinha um problema a resolver. Se não desse a informação e ela vazasse, seria visto com desconfiança. Se desse seria um traíra e provavelmente perderia a amizade do molecão Dudu e de todos os outros garotos do clube. Mestre Mimi pensou mais uma vez, enxugou o suor da testa e dos óculos e passeou os dedos pelo teclado virtual do telefone.

“Tamo junto, papá. Deixa quieto. Vai lá e arrebenta”, digitou Fraldinha.

Mais tarde se explicou a Afrânio afirmando que não conseguira contato com nenhum menino concentrado. O sistema implantado pela comissão técnica era duro, argumentara. Colocou a mochila nas costas e foi para casa. Na quarta-feira, o golpe. Às 16h, portanto quase cinco horas antes da finalíssima, em jogo único, o site rival estampava a manchete que tinha preenchido a cabeça de Fraldinha, mas nunca se tornara realidade. Até aquele momento. “Adaílton é vetado e tem contrato suspenso. Makelelé vai para o jogo”. Fraldinha gelou. Sabia que o contrato do Nove fora suspenso desde a terça-feira. Dudu tinha avisado por mensagem, mas pedira silêncio, mais uma vez. Fraldinha tinha as informações. E não dera para proteger a sua base. Embora tenha sido enigmático, sempre de forma professoral, em redes sociais. Deu dicas, quase nunca compreendidas.

Afrânio, claro, falou aos montes no ouvido de Fraldinha, que jurou de pés juntos que não falava há séculos com Dudu Makelelé, autor de dois gols na final. O editor não acreditou, e disparou inúmeros perdigotos nos óculos de um Miguel impassível. Afinal, já sabia de seu futuro. Na semana seguinte pediu demissão do jornal no qual trabalhara – e do qual omitira informações por amizade – por seis anos. 25 dias depois, Fraldinha aparecia em uma imagem no aeroporto ao lado de Dudu Makelelé, embarcando rumo à França. O garoto, após a atuação na final, fora negociado com o Olympique de Marselha por 12 milhões de euros.

Ao olhar a imagem na tv, Afrânio Sampaio Moscoso, sentado no mesão, falou para si mesmo, baixinho.

“Fraldinha vendido filho de uma…”

Quando, de repente, parou após o sinal de que recebera um novo email, que prendeu sua atenção pelo título. “Dudu Makelelé embarca em busca de evolução na Europa”. Abaixo do corpo do email, no release, o selo com nome da empresa. Ahssed Young Talents Consulting & Wisdom.

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