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O pesadelo virou realidade: São Januário, em uma década, piorou

O impacto do quebra-quebra, da correria desenfreada na arquibancada, a tentativa de invasão de campo e o som de bombas explodindo em São Januário é grande. Mesmo quem não liga tanto para futebol parou em frente à tv para assistir às imagens de selvageria. Assusta. Episódio que reforça o estereótipo de que o estádio vascaíno é um lugar hostil, não convidativo para assistir a jogos de futebol e incapaz de sediar clássicos. Ao ler o relato do antigo companheiro Bruno Marinho, repórter do Extra, sobre o horror passado na Colina, fica difícil discordar. Bruno, colega de redação do LANCE!, vivenciou uma situação que há uma década temíamos. Dá para concluir: sim, o ambiente de São Januário piorou. O pesadelo virou realidade.

Era agosto de 2007. Trabalhava no LANCE!, cobria o Vasco desde o início do ano. O jornal e a administração cruzmaltina viviam às turras. Fora o veículo, em reportagem de Guilherme de Paula, que revelara a fraude na eleição presidencial do clube no fim de 2006. A vitória de Eurico era contestada na Justiça, um novo pleito era provável. O mandatário, irritado, não atendia nenhuma ligação dos repórteres do jornal. Alguns dirigentes da alta cúpula repetiam o procedimento. O clima era ácido. Pesado. Cinzento. Bastou uma matéria sobre a possível penhora do estádio e a barração foi oficializada. Não entraríamos mais no clube. Nada de treino, nem jogo. O LANCE! acionou a Justiça, conseguiu uma liminar e tínhamos direito a frequentar os jogos, eventos públicos. Até o Vasco cassá-la. Nunca soubemos se o clube, de fato, tentou.

Na ocasião, o jornal contava com cinco repórteres na cobertura do Vasco, dividido entre diversas mídias. Bruno era um estagiário recém-chegado e, caso a memória não me traia, foi ele quem atendeu ao telefone naquela tarde. Era curto e grosso. Um aviso informando a ameaça: o LANCE! não deveria ir cobrir o jogo entre Vasco e Náutico naquela noite, em São Januário. Antes de desligar, a voz do outro lado da linha informa: uma ordem, não especificada de quem, mandara “dar um susto” na gente. Eu e o fotógrafo Julio Cesar Guimarães decidimos nos precaver: em vez do carro adesivado do jornal circulando pelas ruas estreitas ao redor de São Januário, um táxi. Nada de climão, o tradicional informe antes dos jogos sobre a movimentação no entorno dos estádios.

Ao chegar no portão das piscinas, entrada da imprensa, o porteiro pediu para o táxi para. Checou a prancheta dos credenciados. E disse, inocente mesmo: “Ah, é o LANCE!”. Foi o bastante para o carro ser cercado. Só pude enxergar pedras nas mãos, alguns tapas no veículo e lembro até hoje de ouvir o Julio gritando: “Entra, entra!”. O táxi voou para dentro do estacionamento, o portão bateu atrás da gente. O objetivo era um susto mesmo, creio. O Vasco venceu bem o Náutico, de goleada. Nessa época surgiu a canção “São Januário, meu caldeirão”. A festa era bonita, o estádio fervia. A gente, do LANCE!, temia. Esperamos muito além do normal para deixar o estádio, já completamente vazio. Dias dias depois, o medo voltou.

Não íamos a treinos. Mas um dos fotógrafos por vezes entrava no clube, em dias de folga, quando fazia um trabalho para outras agências. No sábado pela manhã foi alertado por um radialista ao chegar: integrantes da torcida organiza mais famosa faziam rondas no estádio procurando “alguém do LANCE!”. O fotógrafo correu para a saída. No portão, um grupo batia com violência. Pela fresta de baixo do portão, inúmeras pernas se aglomeravam. Era bastante gente. Em meio ao pânico, ele conta que foi ajudado pelo porteiro, que indicou o banheiro como refúgio. Dito e feito. O caso, então, era mesmo sério. O jornal deveria tomar providências e tentar a melhor segurança para frequentarmos em São Januário. Jamais vou esquecer.

Em algumas oportunidades, o carro dos policiais chegava no estacionamento da redação e escoltava o nosso até São Januário. Dentro do estádio, dois pms, com fuzis, me escoltavam até uma das cabines de São Januário. Uma dessas que foi invadida no sábado, com ameaçada de agressão a outros profissionais de imprensa. Era um receio nosso. Um dia de derrota, uma explosão da torcida. Sobraria para o LANCE!, o ódio era disseminado. Andávamos sem nenhum identificação do jornal. Os notebooks e as lentes dos fotógrafos tiveram os adesivos retirados. Trabalho à paisana no que deveria ser trivial, um simples jogo de futebol. Não houve mais ameaças. Mas brincadeiras eram comuns.

Funcionários mais próximos do círculo da diretoria por vezes até se divertiam com a situação em um encontro casual em um clássico, por exemplo. “Olha o LANCE! Olha o LANCE!”, falavam num tom ameaçador em primeiro momento. Depois, ao constatar o nosso alerta, caíam na pura gargalhada. A barração em São Januário continuou até o dia em que Roberto Dinamite foi eleito, em julho de 2008. Outros veículos, como a ESPN Brasil, e profissionais nominalmente barrados também receberam a “anistia vascaína”. No nosso caso foram 272 dias impedidos de fazer o trabalho corretamente. O Vasco, à época, já estava em frangalhos, mal no campo, rumo ao rebaixamento. Eu, Bruno e outros companheiros de LANCE! temíamos o caos no estádio caso o time fosse rebaixado diante do Vitória naquele 7 de dezembro de 2008.

Havia receio de tudo, mas, principalmente, pela nossa integridade física. O espaço da imprensa escrita no estádio, sob a gestão de Dinamite, não era mais nas cabines, mas, sim, na tribuna de honra dentro da social de São Januário. Medo de um ódio incitado até meses antes. O Vasco caiu pela primeira vez na História. Não houve um pontapé sequer. Já dentro de campo, lembro do rapaz na marquise. De torcedores e até repórteres chorando com a queda. De Edmundo indo embora cabisbaixo sob a penumbra do estádio. E da torcida, unida, cantando o hino do Vasco. Foi um alívio e uma felicidade. São Januário, visto como um ambiente tão hostil, pulsava de dor com o sofrimento de uma paixão. Sem um arranhão no seu patrimônio.

Pulamos para este sábado, praticamente uma década depois. Mais dois rebaixamentos se acumularam, a gestão Dinamite foi um fracasso, Eurico voltou ao poder. A disputa política é mais intensa, rachada. Os relatos, sempre, são de violência entre vascaínos e euriquistas nos jogos. O ódio parece muito maior. Bruno Marinho, segurado por seguranças do próprio Vasco, viveu o que eu temia há dez anos. Outros colegas, presos no banheiro ou feridos, também. Jogadores rivais acuados, bombas, objetos arremessados. As imagens chocaram. Um torcedor morreu do lado de fora. Dois baleados. Gente chorando de pavor, sem um pingo de ternura como naquele fim de 2008. Uma década depois, São Januário realmente piorou. O pesadelo virou realidade.

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