
Adriano Fontes / Flamengo

(Adriano Fontes / Flamengo)
A Copa, traiçoeira, seduz. Convida ao jogo épico sem aviso sobre as dificuldades pelo caminho. Há histórias forjadas nas mais belas trajetórias de clubes que passam necessariamente por canchas sul-americanas. Suor, aflição, mental. Alma. É necessário se entregar por inteiro para abraçar capítulos para a eternidade na Copa. Há no rubro-negro um orgulho quase arrogante de protagonizar histórias. Tornar-se o centro das atenções é algo implícito na natureza do Flamengo. Um jogo bonito, técnico, ofensivo apontado como parte do DNA da Gávea. Mas se desnudar por inteiro, entregar-se até o último segundo também integra a natureza rubro-negra. Em Avellaneda, o Flamengo viveu a sua batalha própria. Segurou o Racing e sua saraivada de bolas aéreas em um empate sem gols para chegar à sua quinta final de Libertadores. Desnudou-se. Entregou-se. Finalista de alma.
Pois alma também haveria no Cilindro. Luzes e fumaça deixavam inebriados qualquer fã do futebol. Na arquibancada, o sí, se puede. Mais do que movido pela organização, o Racing se agarrava à paixão. É necessário, porém, uma mescla. Paixão com razão. Qualidade, estratégia diversificada. Jogar à altura de uma semifinal de Copa. O Flamengo de Filipe Luís os tinha. Provou desde o início. 4-4-2 usual, Plata com Arrascaeta à frente, Luiz Araújo e Carrascal pelos lados. Um time intenso, com muita movimentação à frente. Pulgar e Jorginho por dentro. A ideia era controlar a massa. Acalmar emoções. Razão sobre coração. E, de fato, aconteceu. Time mais aproximado por dentro, toques curtos, jogo a girar de lado a outro. Plata aparecia de um lado a outro, aproveitava para passar por entre os zagueiros na diagonal. Era promissor.
Especialmente porque a paixão do Racing se reduziu a um pensamento único no campo. Viver o futebol tal e qual Gustavo Costas é essencial. Um técnico que lembra um tiozinho à beira de uma pelada do bairro, incessante, sedento pela vitória. É a razão de existir. Mas para ir além na Copa é preciso mais. Houve tentativa de pressão no campo adversário. Mas, tão logo recuperava a bola, a lançava na tentativa de Maravilla Martínez trombar com a defesa rubro-negra, escorar para os lados com Rojas, por vezes Nardoni e esperar a devolução pelo alto. O Flamengo sabia. Estava ciente. Mas, por vezes, deixou a bola voar da direita para a esquerda como na cabeçada de Conechny defendida por Rossi, o fundamental. É curioso.
Este Flamengo milionário, badalado como em outras anos em que arrebatou a América, preza muito pela defesa. É difícil alvejá-lo. Difícil vazá-lo. E tem em Rossi a representação. Ainda que Léo Pereira tenha realizado partida perfeita, soberba, com antecipações precisas, passes afiados. É o goleiro o último bastião. A última esperança. Rossi, encantado pela Copa como qualquer argentino, se agiganta. É capaz de falhar como no jogo com o Estudiantes e, mesmo assim, sair das cinzas para voar nos pênaltis. É frio até o último fio de cabelo. Aguarda o último instante para a saída de bola. Dita o ritmo da paciência alheia. Por isso não foi surpresa vê-lo voar para impedir um gol precoce e outro gol já nos acréscimos. Rossi entende, vive a Copa. Entrega a alma.
Talvez seja um dos jogadores que mais represente o espírito deste Flamengo. Que, às vezes, incomoda a massa. Não tem a fúria como característica primordial. A vibração estridente como marca. É low profile. Jorginho, Pulgar, a dupla de Léos. Alex Sandro. Arrascaeta. Talvez também até por isso haja confusão com uma soberba regular – que, de fato, aparece por vezes. Mas não é tônica. Com o toque aproximado, a frieza como virtude, o Flamengo amansou o Cilindro. Teve chances com Plata, Varela, Luiz Araújo, Arrascaeta. Cambeses fez bem o serviço e evitou que o Flamengo saísse vitorioso já no primeiro tempo. Era a chance de bater o rival sem sustos. Pois a Copa, traiçoeira, seduz. Noites épicas não ocorrem sem dificuldades.
Zuculini marcava e, principalmente, apitava o jogo pelo meio. Já a partir do fim do primeiro tempo, o Racing entendeu: na bola, não levaria. Era frustrante. Mudou a estratégia, passou a pilhar o jogo e o adversário. Trombadas, encaradas, simulações. Tirar o Flamengo minimamente do sério. Conseguiu no segundo tempo. Quando os rubro-negros voltaram com um pouco mais de dificuldade de ter a bola, com um Racing mais à frente, ainda em busca da bola longa salvadora. Plata se enroscou com Rojo no chão. Piero Maza, sem titubear, apontou o vermelho. O equatoriano, talvez ingênuo, desconsiderou o ambiente. Contexto é fundamental em Copa. Campo rival, torcida furiosa, adversários a mudar o estilo do jogo. Expulsão injusta, mas que ocorre em jogos de Copa. Não há utopia. É um tipo de jogo a ser jogado, gostemos ou não.
A euforia abraçou o Cilindro. Filipe Luís talvez tenha lembrado da semifinal da Copa do Brasil contra o Corinthians em 2024. Um Flamengo à la Simeone. Linha de cinco com a entrada de Danilo. Velocidade com Bruno Henrique na frente. Saíam Carrascal e Arrascaeta. Opção tão corajosa quanto surpreendente. Isso porque os dois meias seriam opções para reter a bola, acalmar o jogo. Filipe, inteligentemente, sabia que seria difícil. Contexto de Copa. Preferiu fechar os lados, aumentar a estatura do time e apostar em um Bruno Genrique veloz, chato e, talvez, decisivo. Jogos grandes são para gente grande. A estratégia deu certo. É preciso jogar futebol. E, por vezes, se joga sem a bola. Filipe Luís a entregou ao Racing. Brinquem com ela, garotos de Avellaneda. Tentem. Foi um complicador.
Porque o Racing é talhado para explorar bolas longas. Acionar os lados. Buscar o cruzamento. Não havia espaço até o fundo. Os cruzamentos, inúmeros, surgiam da intermediária. E a defesa rubro-negra, perfeita, estava em noite épica. Rossi igualmente. É difícil mesmo vazar o Flamengo. Gustavo Costas passou a empilhar meias e atacantes ofensivos. Vietto, Zaracho, Balboa. Mas a estratégia era única. Bola aérea, sem criatividade para trabalhar o jogo por dentro. Seria necessário mais. Bem mais. E também sorte.
O Flamengo, já com Emerson Royal e Saúl, induzia o Racing com maestria. Quase brincava com o nervosismo alheio. E, por tabela, segurava seus nervos. Mas, claro, há riscos ao receber tantos cruzamentos. A bola, vadia, pode caprichar. A Copa, lembremos, é traiçoeira. Como no chute de Vietto, em leve desvio em Royal. Rossi uma vez mais buscou. A maior das desconfianças por ali se dissipou. O Flamengo sempre tão orgulhoso do jogo ofensivo, da pressão aos adversários soube se adaptar. Nunca uma semifinal foi tão difícil para os rubro-negras. Mas como é saborosa. O time low profile se desnudou. Pôs-se a vencer dificuldades, ambiente hostil, adversário cascudo, arbitragem duvidosa. Entregou-se. Pela quinta vez na história, a quarta em sete anos. Finalista com alma.
FICHA TÉCNICA
RACING 0X0 FLAMENGO
Data: 29 de outubro de 2025
Local: El Cilindro, em Avellaneda (ARG)
Árbitro: Piero Maza (CHI)
VAR: Juan Lara (CHI)
Acréscimos: 3’/1T e 61/2T
Público e renda: não divulgados
Cartões amarelos: Mura, Rojo (RAC) e Ayrton Lucas (FLA)
Cartão vermelho: Plata (FLA), aos dez minutos do segundo tempo
Gols: –
RACING: Cambeses, Mura (Martirena, 25’/2T), Colombo, Marcos Rojo, Rojas, Zuculini, Nardoni (Zaracho, 25’/2T), Almendra (Balboa, 33’/2T), Solari (Vietto, 33’/2T), Conechy (Vergara, 18’/2T) e Maravilla Martínez
Técnico: Gustavo Costas
FLAMENGO: Rossi, Varela (Emerson Royal, 27’/2T), Léo Ortiz, Léo Pereira e Alex Sandro; Pulgar, Jorginho (Evertton Araújo, 41’/2T), Carrascal (Danilo, 15’/2T) e Luiz Araújo (Saúl, 27’/2T), Arrascaeta (Bruno Henrique, 15’/2T) e Plata
Técnico: Filipe Luís