(Gilvan de Souza / CR Flamengo)
Uma era dourada de vitórias é capaz de forjar uma geração de torcedores insatisfeitos. Parece paradoxal, mas não é. O Flamengo atual padece disso. No imaginário de grande parte da torcida é refém de 2019, um time imponente, com estilo único, vistoso, quase imbatível em terreno sul-americano. Por isso mesmo foi histórico. Raro. Ao tentar buscar a sensação de sempre daquele passado o presente é perdido. Pois o Flamengo que venceu o Internacional por 1 a 0 no Maracanã pelo jogo de ida das oitavas da Libertadores é seguro, organizado e competitivo. Além disso: era mata-mata, Libertadores diante de um adversário difícil.
Natural que a atmosfera afetiva de 2019 esteja ainda na lembrança do torcedor. Que o sonho, o desejo latente seja de subir a rampa do Maracanã a imaginar de quanto será a vitória e não se ela virá. Mas a realidade do futebol, no geral, é dura. Foi mesmo em momentos do mágico 2019. O mesmo adversário, o Inter, o mesmo Maracanã, com um time superior encaixado e em sintonia com a arquibancada. Também uma vitória com gols de Bruno Henrique. Pois foi um jogo duro há seis anos, com o 2 a 0 no placar, como seria nesta quarta-feira.
É necessário acima de tudo apontar que o Flamengo é um time em plena reconstrução. Duvida? Pois pegue a formação do meio de campo muito utilizada por Filipe Luís no primeiro semestre. Pulgar, De La Cruz, Arrascaeta e Gerson. Por razões distintas nenhum estava apto a atuar diante do Inter nas oitavas de final. Era um meio de campo completamente diferente. Isso sem contar, claro, com Wesley pela direita. É necessário se readaptar, formar uma equipe com novos jogadores. Filipe Luís, portanto, treina em pleno jogo. Contra o Mirassol, por exemplo, o técnico ensaiou na parte final o que pretendia diante do Inter. Samuel Lino e Luiz Araújo pelos lados, Bruno Henrique e Plata por dentro. O time em um 4-4-2 capaz de pressionar, pressionar e pressionar. Físico, infernal. E seguro.
A defesa rubro-negra é o grande pilar da equipe em 2025. 49 jogos, 29 gols sofridos. É difícil ferir o Flamengo. Portanto, cabe à equipe ferir o adversário para transformar qualquer superioridade em realidade no placar. Diante de um Internacional que pretendia um 4-2-3-1, o Flamengo o obrigou a permanecer no 4-4-2, mais recuado, com Alan Patrick e Ricardo Mathias à frente, tal era o volume de jogo. Saída de bola limpa dos zagueiros e constante utilização do lado direito do campo, com Emerson Royal e Luiz Araújo. O lateral teve o ritmo quebrado logo no início ao sofrer uma entorse no tornozelo esquerdo. Ainda assim, tentou. O Camisa 7 trazia problemas para Bernabei e, especialmente, Wesley. O ponta colorado, inconformado com tamanho volume e desgaste na marcação, não cansou de cobrar dos companheiros um time que permanecesse mais com a bola. Para respirar. Em vão.
O primeiro tempo foi mesmo de domínio amplo rubro-negro. Jogadas alternadas, viradas de jogo. E muita utilização também de Samuel Lino. O próprio atacante reconhece que ainda falta para seu auge físico. Mas em melhores condições já é um tormento a defensores adversários. É intenso, veloz e tem drible malandro, ágil, sem indicar a direção. Aguirre teve sofrimento ao tentar pará-lo e falhou na maioria das vezes. O Inter, recolhido em seu campo defensivo, tinha muitas dificuldades. Lançava bolas longas em busca de Alan Patrick, figura nula na primeira etapa, e Ricardo Mathias. Não assustou. Apesar de tanto volume, o Flamengo não tinha tanta facilidade pelo centro do campo, em busca de aproximação entre os atacantes. A senha era mesmo pelos lados. Dali Luiz Araújo obrigou Rochet a fazer boa defesa em finalização de fora da área. Em cruzamento Plata também exigiu do goleiro colorado. Faltava aquele simples detalhe, o tal de gol.
Ele chegou em bola parada, uma nova eficiência rubro-negra. Luiz Araújo, com o pé afiado como sempre, na cabeça de Bruno Henrique, facilitado pelo trabalho de bloqueio de Alex Sandro aos zagueiros colorados e pela dupla de Léos que arrastou outros marcadores ao primeiro pau. Sozinho, tranquilo, no centro da área, Bruno Henrique não desperdiçou. Cabeçada certeira, como um típico centroavante. 1 a 0. A aposta em Bruno Henrique tem explicação tática, um atacante muito veloz, leve, pronto para ajudar na pressão à saída de bola do Inter. Ótimo no jogo aéreo, seja ofensiva ou defensivamente. Mas tem, também, o lado quase místico. A capacidade histórica de decisão, o encontro com o mesmo adversário de 2019. Cumpriu bem o seu papel e em função diferente. Em rara oportunidade por dentro, conseguiu dominar, proteger, girar e finalizar.
O segundo tempo trouxe um Flamengo com troca na lateral direita. Royal, sem condições físicas, deu lugar a Varela. O Inter, sem mudanças na escalação, modificou o posicionamento. Adiantou um pouco mais a equipe, aplicou intensidade maior na pressão para incomodar o Flamengo. E em alguns momentos, de fato, incomodou ainda que de maneira mais leve. Um girar da boa à frente da defesa rubro-negra. Ocorreu assim uma junção de fatores que permitiram a equipe de Roger Machado melhorar no jogo. A já citada mudança de posicionamento, a decisão do Flamengo de baixar um pouco mais a pressão aliada à incapacidade dos mandantes em manter a intensidade do primeiro tempo. Fisicamente é impossível. Ainda assim, o time não conseguiu acionar os contra-ataques como gostaria para tentar ampliar o placar. Sem a posse ampla rubro-negra, o Inter conseguia respirar melhor. Alan Patrick, por exemplo, deixou de ser nulo como no primeiro tempo. Trocou passes com Alan Rodríguez, teve mais a posse.
Roger tentou dar mais força ofensiva com Borré no lugar de Mathias. E sacou Tabata da direita para pôr Richard, centralizado à frente da defesa. Wesley, esgotado, deu vaga a Vitinho. Varela acabou mais preso do que o costume para tentar acompanhá-lo. Filipe respondeu com Cebolinha no lugar de Lino, esgotado, e promoveu a estreia de Carrascal na vaga de Plata, este em noite de baixo rendimento criativo. Não conseguiu tanto espaço para gerar jogo como em outros jogos, como diante do Atlético-MG em Belo Horizonte.
Com Pedro já em campo seria de se imaginar um Flamengo para reter mais a bola e ter Carrascal um pouco atrás. Na prática, o colombiano assumiu a função de segundo atacante num 4-4-2 e não num 4-2-3-1. Talvez por ainda faltar o entendimento necessário dos movimentos pedidos por Filipe Luís. Pareceu confuso quanto ao posicionamento. Mesmo em um jogo mais nervoso na segunda etapa Jorginho apareceu como a figura fundamental ao Flamengo. É impressionante o domínio que tem do meio, a tranquilidade em simplificar situações apertadas e organizar o meio de campo. Por vezes foi o sopo criativo necessário ao time desde o primeiro tempo, ao limpar o jogo, trazer o alívio em momentos de pressão. Um craque silencioso.
Roger tentou empurrar o Inter mais à frente, abrindo Gustavo Prado à direita e Bruno Henrique mais avançado no lugar de Alan Rodríguez. Filipe contragolpeou com Evertton Araújo, mais “pegador”, no lugar de Allan. A bola seguiu nervosa. Sem conseguir controlar o jogo totalmente, o Flamengo viu o Inter rondar a área nos minutos finais em busca de um gol que o deixaria confortável para a volta no Beira-Rio. Em um vaivém elétrico foi o Flamengo quem teve a chance perigosa no segundo tempo: Everton Cebolinha tentou o domínio, falhou e na rebatida da defesa Luiz Araújo finalizou mal, em cima de Rochet. Vantagem mínima rubro-negra sacramentada.
Mas é uma vantagem. O torcedor rubro-negro pode reclamar, com razão, da cobrança em caráter quase exclusivo sobre qualidade do jogo do Flamengo. O time pode render mais, especialmente ofensivamente, como tantos outros que também investiram milhões em contratações. Ocorre que o time atual passa por um processo reconstrução. Ainda assim é líder do Brasileiro e arranca com uma vantagem nas oitavas de final da Libertadores. Não bastam milhões, é preciso tempo. Por enquanto, o Flamengo é um time organizado e que preza pela segurança. São oito gols sofridos em 18 jogos no Brasileiro. Três em sete jogos na Libertadores. Há muito a evoluir, obviamente. Jogadores em melhores condições físicas, outros recuperados de lesões. Um encaixe coletivo mais afinado. Mesmo assim teve 66% de posse*, trocou 650 passes contra 334 do Internacional. Sofreu apenas cinco finalizações, nenhuma na direção de Rossi. Verdade, não há a magia ou estética de 2019. Mas ficar refém do passado faz perder o bonde do presente. Um Flamengo competitivo, organizado, em processo de evolução e…seguro.
*SoFa Score
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 1X0 INTERNACIONAL
Data: 13 agosto de 2025
Local: Maracanã
Árbitro: Dario Herrera (ARG)
VAR: Hernán Mastrangelo (ARG)
Acréscimos: 2’/1T e 6’/2T
Público e renda: 63.567 pagantes / 68.493 presentes / R$ 5.175.821,50
Cartões amarelos: Varela (FLA) e Gustavo Prado (INT)
Gol: Bruno Henrique (FLA), aos 28 minutos do primeiro tempo
FLAMENGO: Rossi, Emerson Royal (Varela / Intervalo), Léo Ortiz, Léo Pereira e Alex Sandro; Allan (Evertton Araújo, 38’/2T), Jorginho, Luiz Araújo e Samuel Lino (Everton Cebolinha, 26’/2T); Plata (Carrascal, 26’/2T) e Bruno Henrique (Pedro, 38’/2T)
Técnico: Filipe Luís
INTERNACIONAL: Rochet, Aguirre, Vitão, Juninho e Bernabei; Alan Rodríguez (Bruno Henrique, 41’/2T) e Thiago Maia (Gustavo Prado, 42’/2T); Bruno Tabata (Richard, 33’/2T), Alan Patrick e Wesley (Vitinho, 27’/2T); Ricardo Mathias (Rafael Borré, 32’/2T)
Técnico: Roger Machado