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O Dono dos Bastidores

O embicar do Cadillac Fleetwood 68 na portaria do centro de treinamento recém-modernizado indicava o gosto do motorista pelos clássicos. Apenas a reforma teria custado o triplo do valor da relíquia que era o automóvel, costumava dizer o dono. Natural, era da velha escolha. Os porteiros já sabiam. Da guarita avistavam o Cadillac e sussurravam um ao outro. “É o seu Alario!”. E os portões, sem hesitar um segundo que fosse, abriam caminho para a entrada do velho cartola, óculos Ray-Ban setentista e baforando para fora da janela. Acenava apenas com a mão que segurava o cigarro e acelerava ao estacionamento. Antonio Alario, 65 anos, 40 deles bem vividos no esporte, era respeitado não apenas na agremiação. Era vividamente conhecido nos meandros do futebol.

Tratavam-no pela alcunha de “Dono dos Bastidores”. Se algum problema indicava aparecer na próxima curva de uma rodada da temporada, Antonio Alario já sabia. E tinha resolvido. Gabava-se disso. Poucos conheciam tanto os bastidores do futebol como ele. Naquele clube, entre idas e vindas, era já a sua quarta passagem nos últimos 30 anos. Estabelecia-se nos locais a mão de ferro, mas também com malandragem e malícia necessárias para se adaptar a novas correntes políticas e gerações de boleiros. No fundo, tudo sempre saía como esperado. Se a taça não entrasse na sala de trofeus, ele sabia, pouco tinha a ver com isso. Os bastidores estavam sob controle.

Ao entrar no centro de treinamento partia direto para a sua sala. Também com um ar setentista, ele se aproximava do velho sofá de couro e se refestelava. As únicas permissões à modernidade no recinto eram a instalação de três tvs de 40 polegadas, lado a lado, sintonizadas nos programas esportivos o dia todo. E dois notebooks. Um para ele e outro para seu assistente. Cruzava as pernas e alternava o olhar entre as telas e a enorme parede de vidro ao seu lado, com vista para o campo principal, dois platôs abaixo. Vista magnífica. Alario se orgulhava. Tinha tudo sob o controle. “Dono dos Bastidores”, ele falava para si mesmo vez e outra. E ria. Era divertido. Mas não mais do que ouvir jornalistas pouco experientes em programas de televisão abordar o tema bastidores. Gargalhava sobre o questionamento de sempre.

“Olha lá, Albérico!”, explodiu Alario, tirando o cigarro da boca e se dirigindo a seu assistente, Frederico Albérico. Esguio, com ar intelectual, era uma cobra que sabia circular muito bem no departamento de registros da confederação nacional. Era conhecido no clube como Fred. Apenas Alario o chamava pelo sobrenome, o que não o incomodava.

“De novo, chefe?”, disse o esquálido assistente, ajeitando os óculos por trás de um MacBook dos mais modernos.

“Mas é engraçado demais, olha!”, gritou Alario, voltando quadro a quadro o trecho do programa esportivo com o gravador digital. Aumentou o volume.

Na mesa com cinco participantes no vespertino esportivo, muito se debatia sobre a arbitragem da próxima rodada. O clube de Alario estava empatado em pontos na tabela com o rival de outro estado no campeonato nacional. Faltavam oito rodadas para o fim do torneio. E o jogo de bastidores, Alario sabia, acontecia desde o início. Mas era agora o momento mais acirrado. O jovem com gel no cabelo e aparentando não mais do que 23 anos tergiversava. Alario já tinha cruzado com ele em algum jogo ou outro. Sabia que tinha 70 mil seguidores no Twitter. E se perguntava o porquê de tamanho prestígio virtual.

“Mas é o que eu pergunto. O que é jogo de bastidores? O que acontece? É comprar o juiz, amigo telespectador? É optar por alguma atitude ilícita? Eu me recuso a acompanhar futebol se isso de fato acontecer”, disse o rapaz, de maneira claudicante, olhos na câmera.

Alario e Albérico explodiram em gargalhadas. Ainda achavam espantoso como jovens jornalistas tinham dificuldade de fazer a leitura dos meandros do futebol. De como um campeonato também era disputado. O jogo fora de campo, sabiam, era muito forte. Impossível ser campeão sem jogá-lo. Alario estava há ao menos 30 anos nele. Conhecia muito bem cada passo dado. Quando atacado, contra-atacava. Conhecia o presidente da federação local e também o da federação internacional. Frequentava reuniões, arbitrais. Estava sempre presente. Sabia quem eram os presidentes das comissões de arbitragens. Sabia o histórico de cada árbitro. Seus pontos fracos, mesmo pessoais. Como fazer chegar qualquer tipo de mensagem ou pressão. Quando as gargalhadas ainda reverberavam na sala, o celular de Alario tocou. De súbito, ele parou.

“O que manda, meu amigo? Algo fora de controle?”, perguntou Alario.

Do outro lado da linha, uma voz aguda disparou:

“Começou, seu Alario. Ele disse para todos que o Eduardo Trinet Felippe está no bolso. Melhor o senhor agir”, disse a voz.

Alario agradeceu e desligou. Olhou para a tela e observou o jornalista, dedo em riste, perguntando o que era o jogo de bastidores.

“Se você soubesse como a resposta está na sua cara, guri…”, disse Alario, acendendo outro cigarro.

Os anos de experiência lhe indicavam: aquele seria um momento-chave. O xadrez dos bastidores estava bem controlado, mas uma ofensiva daquelas merecia uma resposta. Tudo para não levar o fatal xeque-mate. Alario não gostava de ver seu time beneficiado. Agia, somente, para não o ver prejudicado. No fundo achava que dava no mesmo, dado o jogo tão complexo. Se Xavier Domínguez, presidente do rival na tabela, espalhara por aí que Trinet Felippe facilitaria as ações para ele na próxima rodada, não passaria sem resposta. Domínguez tinha experiência, ligação com políticos. Mas não era tão rato de corredor de federação quanto Alario.

O diretor de futebol se levantou, puxou a jaqueta de couro, entrou no Cadillac 68 e partiu rumo à confederação nacional. Sabia como agir. Deveria fazer a mensagem chegar à comissão de arbitragem. Dali para o ouvido de Trinet Felippe, um pulo. O árbitro certamente não gostaria de saber que a boca pequena dizia que ele estava no bolso de Domínguez. Tinha, afinal, uma imagem a zelar. Contas a pagar. Um brasão a defender e torneios importantes a apitar no futuro. Sem a escolta superior, não se arriscaria. Alario chegou à confederação e lá seu contato já o esperava. Cara de moço, sorriso de ave de rapina. Esguio em seu terno bem cortado, recebeu Alario com o abraço.

“Professor Alario!”, disse Guto dos Anjos, conhecido, ironicamente, como Diabo Loiro dada a capacidade de resolver minúcias jurídicas.

“Telefone no carro?”, perguntou Alario.

“Claro, claro. Pode revistar se quiser”, disse Guto, com um sorriso felino.

A preocupação de Alario tinha explicação. Ele se recusava a ser juvenil como acontecera com Rodolpho Afif, o Rodo, no ano anterior. Em um almoço com membros da comunicação do clube no qual trabalhava, Rodo detalhara várias de suas ações moralmente condenáveis. Inclusive admitiu ser o responsável por montar um esquema de arbitragem em um dos clubes pelo qual passara. Tudo fora gravado pelo diretor de comunicação, que, demitido, tornou tudo público. Após ficar desaparecido, Rodo foi localizado em Santiago e decidiu se entregar no Brasil, onde cumpria pena. Alario, o Dono dos Bastidores, não poderia se dar ao luxo. Desde então, encontros apenas sem qualquer vestígio de equipamento eletrônico.

“Não será necessário. Escuta, Diabo. Esse filho de uma puta do Domínguez anda espalhando por aí que o Trinet Felippe tá no bolso dele para o próximo jogo. Vai se foder, porra! Ele pensa que aqui tem moleque?”, disparou Alario.

Acostumado ao jeito intempestivo do velho cartola fora das câmeras, Guto não moveu um músculo. Apenas assentiu.

“Ouvi dizer…”

“E que caralhos ele acha que vai acontecer? Eu conheço todo mundo, porra. Se houver uma arbitragem canalha a favor dos caras no domingo, eu vou mover mundos e fundos. Esse filho de uma puta vai perder o brasão, vai apitar só jogo de várzea! Ouviu, porra?”, berrava Alario.

Guto fez que sim. Não adiantaria e também nem havia o que contestar.

“Então estamos falados. Deixe eu ir fazer o que me trouxe aqui”, disse Alario.

Ao sair caminhando rumo ao hall de puro mármore da sede da confederação, Alario sorriu. Sabia que já tinha feito. A mensagem fora passada. Chegaria aos ouvidos de Trinet Felippe de um jeito. Faltava apenas a cereja do bolo. Ao chegar ao quinto andar, local de registros, ele levara uma papelada para agilizar a inscrição de um juvenil entre os profissionais. Mero disfarce. Queria, mesmo, era contato com a secretária. Anita Trinet. Irmã do árbitro. Alario fora lembrado da doce coincidência pelo assistente Albérico assim que deixara o CT.

“Anita, meu bem, como vai?”, perguntou Alario com um sorriso.

“Muito bem, seu Alario. O que lhe traz aqui?”, perguntou a moça com seus grandes olhos castanhos.

“Nada de mais, meu bem. Pode protocolar o registro desse garoto aqui?”

“Sem problemas. O senhor pediu, está feito”

“E o irmão, como vai?”

“Animado, ganhou o brasão nesse ano. Quem sabe ano que vem esteja apitando uma Libertadores”, sorriu a moça.

“Se não fizer besteira, meu bem, consegue. Ele sabe como é o futebol. O jogo é jogado, dentro e fora. É só não fazer besteira. Um beijo, meu bem”, disse Alario.

Um tanto quanto assustada, Anita gaguejou na hora de se despedir. De longe, Alario a viu rapidamente pegar o celular e digitar algo, apreensiva. A cereja estava no bolo.

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No dia seguinte ao fim do campeonato, Alario, ainda de ressaca, celebrava o título conquistado, o terceiro em sete anos. De novo refestelado no sofá de couro, olhava para as três telas em programas esportivos. Em um deles um link ao vivo contava com Xavier Domínguez. Vice-campeão com dois pontos atrás, o presidente vociferava e pedia a profissionalização da arbitragem nacional. E garantia que tomaria providências.

“A minha queixa é em relação à arbitragem em geral. Fomos muito prejudicados! Você lembra aquele jogo a oito rodadas do fim, fora de casa? O senhor Eduardo Trinet Felippe não pode mais apitar nossas partidas. Ele retardou o jogo, matou todos os nossos ataques marcando faltas e ignorava quando sofríamos ações faltosas. Levamos um gol de contra-ataque e tivemos dois gols anulados em impedimento duvidoso! Dois! Um empate em 1 a 1 que deveria ter sido uma vitória. Perdemos o campeonato ali”, berrava Domínguez.

Antonio Alario, 65 anos, saboreava a vitória. Tinha tudo sob controle. O recado chegara em Trinet Felippe. Depois, ele soubera, o árbitro ficou irritado e ligou para o presidente da comissão de arbitragem negando estar no bolso de Domínguez. Garantiu que seria muito rigoroso. Dito e feito. O trabalho restante de Alario foi segurar o próprio presidente, afoito por conceder entrevistas pressionando a arbitragem. Era tática válida a ser utilizada, ele sabia, mas sempre de maneira muito pontual. Assim como acionar os espaços de sempre na imprensa, com velhos conhecidos. O momento, Alario sempre repetia, era tudo. Banalizar a ação nos corredores das federações publicamente trazia mais efeitos negativos do que positivos. Saboreando um uísque, Alario estalou a língua e, olhando para a foto com o trofeu no celular, berrou.

“Eis aqui o Dono dos Bastidores!”

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