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Os soldadinhos do mercado

O belo e raro pôr do sol no horizonte indicava mais um espetáculo no Adriático. Outro dia de verão europeu chegava ao fim com as últimas sensações de calor em forma de raios dourados ao abraçar o veleiro Scudetto. Danico Spaderi tinha orgulho desta embarcação em particular. Presente do avô, Giuseppe, dado ainda nos anos 70 graças ao seu primeiro negócio próspero no mercado da bola. Danico ainda lembrava a transferência de sucesso do artilheiro da Série A, com ajuda de um amigo jornalista para inflar as propostas. Sorriu. Com o sol quase atrás das montanhas em Hvar, entrou em seu estupendo escritório no veleiro. Hora de pausa nas férias. Hora de agir.

Aos 62 anos, Danico Spaderi era um dos agentes mais relevantes no mercado mundial. Dos dez maiores jogadores do mundo, cinco estavam em suas mãos. Sob seu controle. Tinha faro apurado, detectava a possibilidade de negócio e imediatamente partia voraz para abraçá-lo. Investia alto. Era feroz nas negociações. Habitava o olimpo da bola. Poucos tinham acesso a Danico. Sua relações se davam com o mais alto escalão. Presidentes de grandes clubes europeus, outros mega empresários, jogadores estrelares. Nenhum jornalista. Tinha asco a todos eles atualmente.

Nos quais confiava, integrantes da velha guarda italiana, já tinham morrido ou aposentado. Mas Danico admitia que precisava da imprensa. Era peça fundamental em seu tabuleiro para girar a roda de sua fortuna. Deixava, então, a cargo de Nico, seu filho mais velho, o elo para a rede mundial. Pois havia um sistema. Tão logo entrou no escritório, Danico olhou para um mural na parede. Cabelos com gel devidamente penteados para trás até a altura do pescoço, pele morena do verão europeu e corpo elegante mantido a base de dieta mediterrânea, o empresário aparentava ter menos do que os seus 62 anos. Era atraente, carismático. Envolto em um roupão e com um charuto no canto da boca – não conseguira largar o velho hábito, por mais que tivesse tentado – chegou mais perto do mapa e quase cerrou os olhos, observando atentamente.

“Tutti i miei soldati di mercato…”, disse para si mesmo, sorrindo.

No mapa mundi vários alfinetes marcavam lugares no globo com sinalizações onde o grupo Spaderi tinha amigos da imprensa. Assim Danico os chamava. “Meus soldadinhos do mercado”. Separados por cores. Verde, jornalistas que aceitavam qualquer informação sem contestar. Fáceis de manejar. Amarelo, indicavam alguma contestação. Vermelho, os chatos. Contestavam sempre, cruzavam fontes, averiguavam. No fundo, Danico sabia, eram os bons profissionais. Mas eram cada vez mais raros. O mapa mundi estava lotado de alfinetes verdes. As redes sociais, o desespero pela informação instantânea ajudavam muito nesse sentido. A manipulação era fácil. Esquentar o interesse em um jogador, também. A especulação ditava o ritmo do noticiário entre uma temporada e outra como nunca. Não havia triagem, editores devidamente preparados e com responsabilidade sobre a informação. Dane-se a credibilidade. Pouco importava a checagem correta dos fatos. Importava somente o agora. Os cliques. A audiência.

“Que mar de mediocridade….”, Danico se pegou falando baixinho enquanto pensava.

O relógio apontava 20h34 em meio ao Adriático, em Hvar, na Croácia. Danico olhou com afinco o mapa e observou uma região com fartura de alfinetes verdes e horário ainda comercial. Brasil. Seriam 16h34 nos trópicos. País onde o mercado boleiro nunca parava. As redes sociais ferviam, com engajamento alto de grandes torcidas. Em um clique, a Europa saberia da especulação. Nunca fora tão fácil. Uma mão no telefone e Nico estava do outro lado.

“Papà! Mas eu ia te chamar agora!”, berrou Nico em meio a uma música nas alturas do outro lado, provavelmente em um iate em outro ponto do Adriático.

“Nico, hora de agir. Brasil é a bola da vez. Fulgencio quer sair do Milan. Não vai nunca para o Brasil, é europeu, nascido aqui. Mas esquentando no noticiário de lá em um grande clube, aparece coisa boa para ele por aqui. Vamos encaixar na Inglaterra”, disse em tom de ordem Danico.

“Claro, Papà! Sei bem qual soldado acionar!”, respondeu Nico.

“E mais. Deninho está infeliz na Espanha. Mister DeCarlo não quer ficar com ele. Discutiram no vestiário. Quase teve tapa. Uma merda. Mas tem mercado em Portugal. Mesmo esquema. Não volta para o Brasil, mas vamos acionar os soldadinhos de sempre”, acrescentou o empresário.

“Sem problemas, Papà! Agora!”, disse Nico.

Aos 38 anos, Nico Spaderi era o filho mais velho de Danico. Gostava da boa vida, curtia o verão, mas tinha comportamento profissional quando agia no mercado. Ao contrário do pai, sabia lidar com jornalistas. Mas com poucos. O sistema, ele entendia, funcionava bem quando intermediários eram utilizados. Representantes em nome da família Spaderi ao redor do globo. Em cada área, tinham um. Acionou o nome da América do Sul. Emiliano Jupestre era um empresário malsucedido do ramo de empreiteiras que enveredou para o futebol depois de o primo, um zagueiro mediano, ser convocado para a seleção argentina duas vezes. Filho de uma brasileira, Emi era simpático, discreto, sedutor e fez sucesso no ramo. Em uma das visitas de Nico a Buenos Aires fecharam a parceria que até então já durava 15 anos. Era ótimo.

“Emi, mi amico puerteño!”, disparava Nico, que sempre tentava arriscar um espanhol, sem sucesso.

“Como vai, Nico, querido!”, respondeu Emiliano.

“Precisamos daquele exercício de sempre, hein? No Brasil. Terra farta, terreno muito fértil. Naquele esquema. Sempre se certifique ao soldadinho que cite em qualquer diabo de veículo que ele der essa speculazione o nome de Papà para dar o selo de autenticidade…”

“Como siempre, mi amigo, como siempre! Sei bem quais contactar, hã?”, dizia Emiliano, com tom anasalado.

Despediram-se rapidamente, com Nico passando as coordenadas sobre Fulgencio e Deninho. Apenas especular. Três grandes clubes brasileiros, com estrutura e dinheiro, estariam interessados nos dois. Sondagens – ou consultas, o termo da moda – tinham sido feitas por dois deles. Propostas de empréstimo mais compra por um deles. Eram nomes que deveriam circular em internet, tvs e redes sociais.

“Fácil!”, bradou Emiliano, pensando para si mesmo do alto de sua varanda em um prédio em Palermo Soho, na capital portenha.

Emiliano sabia muito bem como agir. Acompanhava a evolução da velocidade da informação. Desde a invenção do WhatsApp, a tarefa tinha ficado ainda mais tranquila. Poderia estar de cueca, em casa, assistindo a uma série e controlando os jornalistas dali da tela de seu aparelho. Tinha predileção por correspondentes no exterior. Passava sempre um ar de maior legitimidade. O complexo de vira-lata brasileiro, ele sabia, nunca passava. Emi tinha morado por cinco anos no Brasil, entre Rio e São Paulo, no fim dos anos 90. Sabia – e não compreendia – da sedução que umas palavras estrangeiras provocavam aos ouvidos brasileiros. Nas redações de jornalismo então era insuperável. Se algo vem do exterior é mais confiável. Mais legítimo.

Portanto, fazia questão de deixar claro no meio que era o intermediário de Danico Spaderi na América do Sul. Ter um contato com ele era caminho para a mina de ouro a um jornalista.

“Ou para o alistamento, soldadinhos”, ria Emi sozinho.

Emi fazia o estudo de todos os perfis. Analisava redes sociais, número de seguidores, materiais produzidos, currículos dos profissionais. Sabia quais deixavam se levar por qualquer informação barata, quais cruzavam informações com outras fontes. Quais eram vaidosos. E quais viviam quase exclusivamente do mercado. Sabia, também, que deveria abastecer alguns com ração batizada, como chamava. Meias-verdades. Informações verdadeiras misturadas com falsas. E, outras vezes, apenas falsas. Apenas utilizar o canal do jornalista. Era o caso desta vez. Era o caso de escolher um nome totalmente verde, que não tivesse contestação. Saberia que seria utilizado e não teria problemas com isso. Trabalhasse especificamente com mercado. E, se possível, tivesse no histórico passagem como correspondente no exterior. Era o selo necessário. Puxou, então, sua lista de perfis. Tinha vários candidatos no Brasil. Lá se plantava e tudo dava. Alguns mais experientes, outros guris metidos a malandros. Pretensos repórteres e âncoras de programas sobre transferências. Bateu o olho e definiu. Mandaria mensagem para Bento Penafiel.

Bento era profissional conhecido no Brasil, ao menos no meio esportivo. Somava incríveis 650 mil seguidores somente no Twitter – embora muitos eram bots árabes comprados em tempos idos, o meio sabia. Contava com um canal no Youtube com mais de um milhão de inscritos. Tinha sido correspondente esportivo em Portugal, Espanha e Itália. Há dois anos tinha voltado para o Brasil, quando aceitou ser comentarista em uma tv. Tinha enorme predileção pelo mercado de transferências. Era o momento no qual mais aparecia. E simplesmente aceitava qualquer tipo de informação que chegasse até ele. Não cruzava dados. Jogava no ar em busca de engajamento. Engajamento para ele significava dinheiro. A bela cobertura triplex que havia comprado recentemente por R$ 2,5 milhões era seu argumento. Para Emi, no fundo, um retrato da decadência da profissão. Mas ele nada tinha com isso. Passou a mão no telefone e ligou. No segundo toque, Bento atendeu.

“Bento! Amigo! Tenho uma boa…aliás, duas. Quieres?”, perguntou Emi com um sorriso felino ao telefone, sem nenhuma dúvida da resposta.

“Emi, e eu lá sou de recusar notícia? Manda!”, disse Bento, de bate-pronto.

“Querido, essas duas com selo de siempre, hein? Entonces…Fulgencio e Deninho foram consultados pelos três grandes clubes…hay duas propostas por Fulgi e unazita por Deni. Préstimo e compra. Tudo pode acontecer em breve, hein? Anda muito bem. Vai em site, tv e Twitter, amigo?”, perguntou Emi.

“Que beleza, Emi! Os três do momento, cheios da grana, dois jogadores importantes. São duas quentinhas. Ou melhor, quentíssimas! Uma vou tuitar agora e chamar pro programa de tv que participo daqui a pouco. A do Fulgi. A de Deninho solto cedo amanhã no site e no Twitter, pode ser? E vou bombar com os feedinhos!”, gritou Bento.

“Claro! Você manda! Abrazos, querido!”, disse Emiliano, desligando.

Em seguida, puxou o celular e mandou uma mensagem para Nico: “Feito. Em uma hora Fulgi explode. Mañana vai Deni”

E, deitado, cruzou as pernas em seu sofá. Meia-hora depois conferiu o Twitter. Já estava lá para os 650 mil seguidores de Bento Penafiel.

“@bentopenafiel Bomba!! Fulgencio na mira de três grandes clubes brasileiros! Os detalhes da proposta, como está a negociação, tudinho eu conto daqui a pouco na TV! Liga lá!”

Os feedinhos aos quais Bento se referia na conversa fariam o serviço de explodir nas redações esportivas a notícia, Emi sabia. Era uma categoria relativamente nova no meio. Uma molecada recém-saída da faculdade – ou nem saída ainda – cuja única tarefa era monitorar redes sociais de jornalistas, influenciadores e veículos confiáveis ou nem tanto e pinçar links e tweets com “notícias” capazes de gerar engajamento. Como não tinham nenhuma prática ou discernimento jornalístico e sequer eram instruídos, qualquer mínima especulação era rapidamente pescada pelos feedinhos e atirada nos grupos de WhatsApp internos das corporações. Portanto ficavam responsáveis pelo feed. Daí eram os feedinhos. Alimentavam o caos muitas vezes sem ter noção disso, com a colaboração de superiores que deveriam ter filtro. Mas, de propósito, não tinham.

Emiliano gargalhava com o circo. Sabia que não existia nada. E ainda o impressionava como Bento, jornalista internacional de tv, site, com 650 mil seguidores no Twitter e um milhão de inscritos no Youtube não o havia questionado em momento algum sobre a informação. E, claro, nem checara com os clubes. E mesmo se tivesse a negativa, sabia, teria publicado do mesmo jeito. No fundo sabia do vazio que era a, digamos, notícia. O tom pomposo e professoral de Penafiel, como quem conhecia os bastidores profundamente e tinha fontes em todos os clubes do Brasil e da América do Sul, fazia Emiliano perder o fôlego de tanto rir. E ainda carregava com ele uma vaidade besta de sempre citar Danico Spaderi como se fosse íntimo e soubesse todos os passos do mega empresário. Nunca haviam se falado. Danico sequer sabia o nome do fiel soldadinho brasileiro.

No dia seguinte, como prometido, a coluna no site de Bento Penafiel indicava o interesse dos três clubes também em Deninho. Mais propostas. Mais repercussão em Twitter. Torcedores se engalfinhavam em redes sociais, faziam análises táticas, comentaristas debatiam amplamente em tvs os encaixes dos jogadores. Os sites abordavam a possibilidade. Fulgencio e Deninho comandavam o noticiário esportivo brasileiro e assim permaneceu por mais três dias. E não existia negociação alguma. Tampouco consulta. O clube não avaliava Fulgencio. O outro tampouco tinha Deninho em sua pauta. Era tudo mais uma farsa que surgira no Adriático e passara sem crivo algum no frágil terreno de especulações do jornalismo esportivo brasileiro.

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Uma semana depois, ainda no verão europeu em pleno Mar Adriático, Danico Spaderi curtia o fim do dia ao lado da namorada, uma ex-modelo 25 anos mais jovem. O Scudetto balançava mansamente com as ondas do mar próximas ao litoral de Hvar. A visão das muralhas do século XVIII sempre prendiam a atenção de Danico desde que seu avô Giuseppe o levava ali, ainda garoto, para lhe contar lendas da região. Ainda era cedo, por volta de 16h30, quando o celular do mega empresário apitou. Eram dois vídeos enviados por Nico. Em um Fulgencio estava ao seu lado enquanto era apresentado no Everton, na Inglaterra. No outro, um intermediário do grupo Spadari acompanhava Deninho na sua chegada ao Sporting. Danico pegou o charuto de canto de boca, deu uma baforada e olhou de longe para o seu mapa mundi lotado de alfinetes verdes dentro do escritório do veleiro, sorrindo:

“Ah, miei piccoli soldati…”