Bruno Henrique Flamengo Barcelona Guayaquil 2021 Libertadores
Sí, se puede: Flamengo histórico traça linha do Equador ao Uruguai pelo tri da América
02 outubro 02:18
Os soldadinhos do mercado
24 janeiro 22:54

Em um piscar, o baque rubro-negro: organizado, Palmeiras dá choque no Flamengo e leva o tri

Andreas Pereira Flamengo Palmeiras Final Libertadores 2021

(Divulgação / Flamengo)

Bruno Henrique Palmeiras Flamego final Libertadores 2021

(Divulgação / Flamengo)

Temos a tendência a resumir tudo a um instante. Um lance. Ali o feitiço se fez. Ou o encanto se quebrou. Na postura errada de Andreas. No corpo desequilibrado. No gesto que indicava desconcentração em momento tão crucial. O disparar de Deyverson com a bola no Centenario prendeu suspiros dos dois lados. Rubro-negros e verdes. A bola na rede os fez explodir em urros pelo ar uruguaio a tomar caminhos distintos. Da decepção e da glória eternas. O Palmeiras, tricampeão da América, dava um choque ao Flamengo. Não, não era o instante de Andreas que resumia tudo. Foi todo o processo que levou àquele momento. De um lado, um time organizado, fisicamente inteiro, com uma estratégia para início, meio e fim. Pronto. Do outro, um time a funcionar quase por si, por intuição, sem condições ideais, agarrado a pensamentos que pertencem ao passado. Assim, em um piscar, a América continuou verde.

Palmeiras: linha de cinco, Piquerez zagueiro, Scarpa de ala

Chega a ser curioso observar com o jogo já encerrado. Pois na gangorra do futebol entre o fim da semifinal da Libertadores e o apito inicial de Nestor Pitana no Centenário, Palmeiras e Flamengo se alternaram no favoritismo. Os rubro-negros saíram de Guayaquil absolutos, com uma ótima passagem diante do Barcelona. Mas esfarelaram física, tática e mentalmente em outubro. Aos poucos começaram a se recuperar enquanto o Palmeiras fez o caminho inverso. Gangorra. Mas com uma diferença: fisicamente o time, ou melhor, o elenco de Abel Ferreira sempre se mostrou inteiro. Era preocupação clara do português, capaz até de mandar a campo dez dias antes, em um clássico no próprio quintal contra o São Paulo, um time reserva. É preciso coragem. Apostar alto. Abel o fez. O Flamengo, por sua vez, indicava aumentar a intensidade pós-desastres recentes. Bons jogos contra São Paulo e Internacional. Ainda que com os poréns defensivos usuais, a pressão na saída de bola do adversário, a voracidade ao atacar. Tudo isso desapareceu no rolar da bola no Centenário.

Flamengo no início: quarteto original em campo

No apito, o Flamengo ideal estava em campo. 4-2-3-1, com o quarteto histórico à frente, Arrascaeta mais centralizado, Bruno Henrique e Everton Ribeiro abertos, Gabigol à frente. Mas de início era possível entender que a intensidade e a pressão na saída rival que levou apuros a São Paulo e Internacional não estariam presentes. Rotação abaixo do necessário a uma decisão de tal tamanho. Um misto de opção e necessidade, provavelmente. Físico e tático. Abel Ferreira trouxera a surpresa do outro lado. Não por inteiro. Mas ao seu jeito. O técnico palmeirense mereceu inúmeras críticas pelo defensivismo extremo ao encarar adversários do mesmo nível. Ao optar por uma via quase única de contra-ataque para agredir os rivais. E pela opção de basicamente não atacar nas semifinais contra o Atlético-MG. O risco foi muito alto e quase incompreensível. Trata-se do Palmeiras, com elenco qualificado, ainda que inferior a Galo e Flamengo. Mas Abel mostra que está atento às críticas. Mostra predisposição a evoluir, mostrar outra faceta.

Já fizera na Supercopa do Brasil contra o próprio Flamengo, logo após receber bordoadas justas pela maneira como atuara na final da Libertadores 2020 contra o Santos e no Mundial de Clubes. Em Brasília apresentou um Palmeiras mais avançado, com pressão no campo rival, disposto a jogar. Os passos atrás na semifinal contra o Galo acabaram, portanto, como uma decepção. As críticas talvez tenham feito eco na cabeça do português uma vez mais. Abel montou uma estratégia. Surpreender o Flamengo dentro de uma ideia estabelecida. Agredir e moldar o jogo à sua maneira desde o início. Assim o fez. Primeiro optou pela excelência física. Felipe Melo, longe do ideal, ficou no banco. Mas a linha de cinco não seria desfeita. Apenas construída de outra maneira. Um 3-4-3. O trio inicial com Gómez, Luan e…Piquerez. Nas alas, Mayke e Gustavo Scarpa, que integravam a linha de cinco. Zé Rafael, Danilo ficavam por dentro, com Dudu e Raphael Veiga mais adiantados. À frente de todos, Rony com sua velocidade. Sem a bola, um 5-4-1.

O Flamengo demorou alguns minutos a entender o posicionamento palmeirense. Talvez porque Scarpa, usualmente na direita do ataque, estivesse como ala esquerdo. E sem o lado físico ideal, o time de Renato se resguardava ao pressionar. Mantinha um 4-4-2, com Arrascaeta e Gabigol mais avançados. Sem pressão, o Palmeiras trocou passes na defesa com quatro minutos e tramou o seu golpe fatal, já tentado em duelos anteriores, tanto no Brasileiro 2020 como no Brasileiro 2021, por exemplo. Uma especialidade. Bola esticada às costas do lateral e cruzamento para o meio em busca do arremate. Gómez teve tranquilidade para lançar Mayke atrás de Filipe Luís. Foi perseguido por Bruno Henrique, em vão. Raphael Veiga se desvencilhou de Arão com facilidade e recebeu o passe livre, de frente para Diego Alves, que nada pôde fazer diante da chapada rasteira. 1 a 0. Com cinco minutos. A primeira parte da estratégia de Abel tinha sido cumprida.

O Flamengo precisaria, então, atacar. Ceder espaços. Pressionar. Colocar intensidade que parecia não ser capaz pela dificuldade física. Arrascaeta voltava de lesão muscular. Bruno Henrique, com bandagem no joelho esquerdo, parecia não estar solto nos movimentos. Arão também parecia mais travado do que o usual. Ainda assim, o time tentou. Mais de maneira intuitiva, como ocorreu desde a chegada de Renato. O quarteto de frente tentou dialogar para encontrar algum espaço diante do Palmeiras bem fechado. Foram pouquíssimos. A rigor, teve duas chances. Uma quando Andreas aproximou por dentro e achou Bruno Henrique na área. O atacante titubeou ao chutar, cortou Luan e acabou desarmado por Mayke. Havia pouco espaço. Arrascaeta recebia a bola, girava. Em um dos lances, Gabigol fez a tradicional jogada pela direita para achar Bruno Henrique na segunda trave.

A cabeçada para trás encontrou Arrascaeta, que matou a bola com o peito e bateu para o chão, obrigando Weverton a fazer excelente defesa. Primeira finalização no alvo rubro-negra apenas aos 42 minutos de jogo. A marcação verde era intensa. Ajustada. Fisicamente, o Palmeiras ganhava a maioria dos embates. Estava inteiro. O Flamengo indicava que não, principalmente quando Filipe Luís caiu no chão com nova lesão na panturrilha e cedeu lugar a Renê. O time perdia ali não só uma leitura de jogo na defesa: perdia também uma peça para enxergar espaços e construir o jogo no ataque.

A desvantagem e a presença discreta de peças como Everton Ribeiro indicavam que o Flamengo tentaria igualar o Palmeiras ao menos na parte física. Não o fez. Voltou para o segundo tempo com a mesma equipe, embora com formação diferente. 4-4-2 próximo ao desenho de 2019, Arrascaeta à esquerda, Bruno Henrique encostado em Gabigol. Andreas deu passos à frente para tentar aproveitar as costas de Danilo, incansável no primeiro tempo. Ao menos preocupá-lo. O Flamengo melhorou, ocupava mais o campo rival. Mas assustou, mesmo, nas bolas paradas, com Bruno Henrique em um escanteio e David Luiz, em bola que Weverton bloqueou o cruzamento. Faltava mais agressividade, maior organização para atacar, esgarçar a defesa palmeirense. Michael substituiu Ribeiro apenas aos 17 minutos. Era um Flamengo mais intuitivo. Com volantes mais avançados e que cedia espaços. E o Palmeiras achava.

Em um desses lances, Piquerez do campo defensivo encontrou Rony atrás de Andreas e Arão e à frente dos zagueiros. O atacante dominou, girou e teve calma para bater para o gol. Só não marcou graças a uma bela defesa de Diego Alves. No embalo, o time rubro-negro tentava pressionar o Palmeiras. No talento, encontrou o gol de empate. Arrascaeta a Gabigol, com ultrapassagem pela esquerda, invadindo a área. O chute saiu rasteiro, entre Weverton e a trave. O goleiro aceitou. 1 a 1 que incendiou o jogo e pôs pressão na equipe de Abel. À essa altura, os volantes já tinham sido substituídos, esgotados. E o Palmeiras aceitava ser empurrado para o campo defensivo ainda que por um rival desorganizado. Arrascaeta, então, tentou utilizar o veneno do próprio Palmeiras. Lançamentos para o velocista às costas da defesa. Quase foi o bastante. Michael ganhou na corrida e no tempo de bola de Piquerez. Frente a frente com Weverton bateu torto para fora. A prorrogação decidiria o tricampeão.

Palmeiras na prorrogação: Deyverson à frente para pressionar

Um suspiro ao Palmeiras, que parecia ter dificuldades físicas e até táticas na reta final. O Flamengo, embalado com o empate, atacava de forma desorganizada, mas parecia confiante de que marcaria o segundo gol. Tinha facilidade para sair desde o campo defensivo e lançar a bola, como ocorreu com Arrascaeta, ou carregá-la mais à frente, como poderia fazer com Andreas, figura importante em campo. Abel percebeu à beira do gramado. O intervalo até a prorrogação foi o suficiente para consertar o que escapava pelas mãos no fim do tempo normal. Sacou Raphael Veiga e pôs Deyverson em campo. Rony por um lado, Wesley pelo outro. O camisa 9 ajudaria na pressão rival. Tirar o conforto do Flamengo na saída de bola e também dar conforto para a organização defensiva da própria equipe. Evitar o sofrimento que houve no fim do segundo tempo. Estratégia. Do outro lado, Kenedy por Bruno Henrique.

Fla ao fim, na prorrogação: atacantes no abafa, em desespero

Então há o lance. Antes há o processo físico, distinto de cada lado. Antes há a estratégia de Abel. Há a dificuldade de organização de Flamengo. O jogo intuitivo e menos estratégico. E há o lance de Andreas. Sem os outros fatores o lance do Camisa 18 poderia existir e talvez nem impactar no resultado. Por isso nem tudo se resume a ele. Mas é inegável que é crucial. Arão é o responsável por fazer a saída de três, entre os zagueiros. Ele cobra o tiro de meta a David Luiz, que carrega a bola. Deyverson faz o combate e o derruba. Falta. No instante da cobrança, Arão se apresenta para receber a bola, mas Deyverson o acompanha. Arão então avança pela lateral. Andreas, por dentro, com mais liberdade, recebe a bola e Danilo Barbosa sobe para pressioná-lo. Reparem: o Palmeiras está bem mais avançado na prorrogação, pressiona a todo instante o Flamengo. Estratégia. O Flamengo parece não saber como sair de um momento como esse. Não está preparado.

Ao receber a bola novamente, David Luiz a leva para a lateral. Deyverson abandona Arão e indica para Danilo Barbosa pressioná-lo. David Luiz, então, volta o jogo a Andreas. O volante belgo-brasileiro tem enorme qualidade técnica. Acima da média para os padrões nacionais. Tem como característica quase esconder a bola com o pé. Ginga o corpo para dar o passe. Invariavelmente já sabe o que vai fazer antes de receber a pelota. Pensa no lance seguinte. Mas cometeu o erro fatal. Deixou-se desconcentrar, pensou além sem antes ter a segurança de definir o presente na prorrogação de uma final de Libertadores. O posicionamento corporal errado não deixou chances para inverter o quadro. O domínio com o pé esquerdo não deu opção ao pé direito. O pensamento que já estava no futuro não se deu conta que a bola, viva, estava ofertada a Deyverson. Fatal. O Camisa 9 deu o bote e avançou. Diego Alves ainda fechou o ângulo e jogou a perna para matar o contrapé. A bola toca no goleiro, mas com a batida forte morre no gol. Entra na rede e na História. Eterniza Deyverson e, também, Andreas. No futebol há bônus. Mas também há ônus. Cabe a cada um saber lidar com o que a cancha lhe apresenta.

Mentalmente o Flamengo desmoronou. O embalo que colocava o time em boas condições de conquistar o tricampeonato depois do empate até mesmo de maneira intuitiva, fazer valer o talento sobre a estratégia de Abel, se esvaiu. As tentativas desesperadas, e com atraso, de Renato no segundo tempo da prorrogação de Vitinho e Pedro mostraram o velho empilhar de opções ofensivas, mas sem caminho previamente traçado para buscar o gol. O Palmeiras, organizado, se defendeu até o fim com a vantagem para garantir o seu tricampeonato, o bi de forma consecutiva, e dar um choque ao rival rubro-negro.

Um resumo fiel da temporada 2021. A rigor, o Flamengo perdeu um bonde importante da História, quando tanto anunciava desejar impôr uma hegemonia a seus rivais. Tinha condições claras para isso. Montou elenco muito qualificado, claramente superior aos principais adversários – em termos técnicos – no continente desde seu ano dourado para cá. Não conseguiu conquistar a Libertadores novamente. Em 2021, nem mesmo o Brasileiro. Ter apenas ótimos jogadores não é o suficiente. É preciso comissão técnica qualificada, capaz de transformá-los em um time estratégico, organizado, competitivo e ainda assim permitir que o lado intuitivo apareça em campo.

Foi o que fez Jorge Jesus com sua equipe de trabalho durante o ano que permaneceu no Brasil. Com Domènec Torrent e Rogério Ceni, o clube tentou seguir a linha de um jogo impositivo, ofensivo, com controle das partidas e organizado, ainda que com falhas durante o processo. Houve conquistas e ainda assim pedido equivocados por mudanças sem alternativas válidas que representassem garantia de melhora. Com Renato a ruptura foi gritante. Um jogo muito mais intuitivo e menos organizado. Sem controle algum das partidas. Um Flamengo que ficou à mercê de suas individualidades. Sem tê-las no auge físico, como ocorreu em Montevideu, o risco é grande. Não se trata apenas da falha de Andreas – com a qual ele terá de conviver naturalmente para sempre. Trata-se de um Flamengo que sucumbiu em diversos fatores – físico, tático, técnico, mental – antes que a bola escapasse do pé de Andreas. Num piscar, o organizado Palmeiras deu um choque de realidade no Flamengo. A tarde de 27 de novembro de 2021 trouxe lições e cicatrizes que o universo rubro-negro deveria absorver e refletir. Os sinais sempre estiveram na caminhada, de maneira até latente. Nada se resume a um lance.

FICHA TÉCNICA
PALMEIRAS 2X1 FLAMENGO

Local: Centenario, em Montevideu (URU)
Data: 27 de novembro de 2021
Árbitro: Nestor Pitana (ARG – Fifa)
VAR: Julio Bascuñan (COL)
Público e renda: não divulgados
Cartões amarelos: Piquerez, Gustavo Gómez e Felipe Melo (PAL) e Rodrigo Caio, Gabigol, Arrascaeta (FLA)
Gols: Raphael Veiga (PAL), aos cinco minutos do primeiro tempo; Gabigol (FLA), aos 26 minutos do segundo tempo e Deyverson (PAL), aos quatro minutos do primeiro tempo da prorrogação

PALMEIRAS: Weverton; Mayke (Gabriel Menino, 90′ + 15′), Luan, Gustavo Gómez e Piquerez (Felipe Melo, 90′ + 22′); Danilo (Patrick de Paula, 24’/2T), Zé Rafael (Danilo Barbosa, 35’/2T), Gustavo Scarpa, Raphael Veiga (Deyverson, 90’/2T), Rony e Dudu (Wesley, 31’/2T)
Técnico: Abel Ferreira

FLAMENGO: Diego Alves, Isla (Matheuzinho, 33’/2T), Rodrigo Caio, David Luiz e Filipe Luís (Renê, 31’/1T); Willian Arão e Andreas Pereira (Pedro, 90′ + 20′); Everton Ribeiro (Michael, 17’/2T), Arrascaeta (Vitinho, 90′ + 2’’) e Bruno Henrique (Kenedy / 90′), Gabigol
Técnico: Renato Gaúcho

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