Certamente nunca houve na História tamanha distância técnica entre Flamengo e Vasco. Um breve passar de olhos numa lista com os elencos e a constatação é óbvia. A superioridade rubro-negra é tamanha que em condições normais a vitória ocorreria sem grandes sustos. Trata-se, porém, de um clássico. O Clássico dos Milhões. A rivalidade tradicional traz combustível de parte a parte. Equilibra forças. O lado com maiores limitações se mobiliza. No caso, o Vasco. O lado com ampla vantagem técnica por vezes se espanta e encontra dificuldades enormes para vencer. Foi o que ocorreu no Engenhão neste domingo, na vitória rubro-negra por 2 a 1 arrancada no apagar das luzes com chute magistral de Arrascaeta. Daí o motivo para frustração de parte a parte: entre os rubro-negros pela vitória com uma apresentação muito aquém do esperado. E dos vascaínos por um time que teve dignidade e competitividade, mas falhou no último instante e saiu derrotado.
Desde que voltou a figurar no alto escalão do futebol sul-americano, como protagonista de todas as competições, o Flamengo demonstra dificuldades nos clássicos. Conte aí desde os tempos de Jorge Jesus quantas goleadas ocorreram diante dos maiores rivais. Um 4 a 1 sobre o próprio Vasco, em Brasília, em jogo absolutamente insano, com direito a penalidades perdidas pelo rival. Usualmente é um time que ainda que esteja absoluto em campo não reproduz no placar. Estaciona e não leva o gosto da arquibancada ao gramado. Com uma semana livre para treinos, ao contrário do adversário, sem nenhum problema físico além de Rodrigo Caio, a condição era ideal para um Flamengo com fome. Paulo Sousa teve as peças à disposição para formar o que considerava ideal ao momento. Montou mais uma vez a equipe no seu 3-4-2-1, trinca com Fabrício Bruno, David Luiz e Filipe Luís, Arão e Andreas por dentro, Matheuzinho e Everton Ribeiro nas alas. À frente, o trio Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol.
Do outro lado, Zé Ricardo segurou Raniel de olho na Copa do Brasil. Um confronto com a Ferroviária antes, outro com o Juazeirense depois. No meio, o poderoso Flamengo. Situação difícil. Como poupar de onde já pouco tem? A ideia de Zé foi segurar Raniel, pôr Getúlio à frente com Nenê e mandar a campo um 4-4-2, com Gabriel Pec e Riquelme estratégicos pelos lados. Ao atacar seriam eles os responsáveis pela velocidade. Mas ao defender eram eles os responsáveis por formar com os zagueiros e laterais uma linha de seis defensores. Travar o Flamengo do jogo já usual do time de Paulo Sousa: triangulações pelos lados para tentar a jogada com paciência até o cruzamento ou passe mais atrás ser certeiro ao encontrar espaço na área. Um 6-3-1 quando Getúlio recuava para tentar fechar o centro com Zé Gabriel e Juninho. O Vasco exagerou na postura de presa. O Flamengo, de bom grado, se colocou como predador.
Iniciava o jogo principalmente pela esquerda, com Filipe Luís, Andreas e Everton Ribeiro. Dali circulava de lado a lado para tentar acionar os atacantes. O Vasco fechava as pontas, mas havia amplo espaço para a bola girar pelo centro. Rondava a área com uma constância não indicada para quem tinha como premissa se defender. Bastaram dez minutos. A pressão de bola do Flamengo na saída vascaína era constante. E foi eficiente. Riquelme foi desarmado, Arão com a bola nos pés tocou em Gabigol, que esticou em Matheuzinho. No cruzamento, Anderson Conceição, sozinho, jogou para escanteio. O Vasco tentava respirar. Não conseguiria. Na cobrança, Arrascaeta jogou a Arão, que dominou, girou e cruzou para Filipe Luís se antecipar a Léo Matos na pequena área. De cabeça, 1 a 0.
Superioridade tática, técnica e no placar. Pouco tempo já rodado no cronômetro. Adversário recuado. O panorama parecia indicar um Flamengo avassalador. Falsa impressão. O domínio rubro-negro seguiu por mais alguns minutos com troca de passes de lado a lado. Mas o Vasco, então, percebeu a necessidade de avançar. Combater mais o Flamengo no campo ofensivo. Pec e especialmente Riquelme deram mais passos à frente. Pela esquerda a equipe tinha mais facilidade de explorar deficiências rubro-negras. Paulo Sousa optou por alternar o posicionamento dos três jogadores mais avançados. Foi muito comum observar Bruno Henrique centralizado, Arrascaeta mais à esquerda e Gabigol à direita. Havia troca de posições, mas não com a mobilidade necessária para confundir e criar problemas para a defesa vascaína. O Flamengo, ao se defender, desenha um 4-4-2. Gabigol tem dificuldades em fechar o setor pela direita, no auxílio a Matheuzinho. Zé Ricardo soube explorar melhor o lado. Levou problemas duas vezes.
Primeiro em um cruzamento de Riquelme para Getúlio. David Luiz fez bom corte e impediu a finalização de frente para Hugo. Depois, Nenê cruzou da ponta na cabeça de Zé Gabriel, que só não empatou a partida devido a uma defesa espetacular de Hugo no canto esquerdo. O Flamengo já havia baixado a intensidade e mentalmente indicava ter problemas. Perdia divididas, mostrava maior nervosismo. Andreas cometeu falta e levantou demais o cotovelo – poderia ter custado uma expulsão. Nenê já circulava com maior facilidade atrás dos volantes rubro-negros. O Vasco subia o nível de competitividade. Paulo Sousa, enérgico na área técnica, parecia sentir a dificuldade.
Na volta ao segundo tempo, o Flamengo tentou repetir a estratégia do início da partida. Ocupação do campo rival, troca de passes até achar uma brecha para ampliar a vantagem. Arrascaeta tentava o centro para tentar acionar Bruno Henrique ou Gabigol e entradas em diagonal por trás da defesa. O Vasco, do seu lado, esperava pelo erro. Ele veio inicialmente com Andreas Pereira. Um desarme sofrido que, claro, remeteu a Montevideu. É um erro a ser corrigido. Não apenas na parte mental, uma necessidade óbvia. Mas Andreas, muito técnico, tenta utilizar a qualidade ao dominar a bola para acelerar o jogo. O erro pode ser fatal. Ao perceber a bola chegando, ele já pensa na sequência da jogada. Tem o costume de gingar o corpo, deixar a bola passar e aí tentar protegê-la do adversário que se aproxima em busca do desarme. Gerson fazia isso com extrema eficiência e segurança. Dificilmente era desarmado. Andreas tem sido muito pressionado pelos rivais. Tem perdido no corpo. No tranco. Assim aconteceu.
Gabriel Pec disparou no contra-ataque diante de um Flamengo absolutamente escancarado. O erro de Andreas foi primordial, Filipe Luís também não conseguiu ajudá-lo. E David Luiz errou o cálculo de maneira fatal. Pediu calma aos companheiros e ao mesmo tempo não pressionou Pec. O chute espetacular ainda beijou a trave antes de balançar a rede. 1 a 1. O panorama até mesmo favorável da arquibancada rubro-negra havia virado. O Vasco, confiante, reforçou o caráter defensivo para travar o jogo do rival. E as vaias direcionadas a Andreas decretaram um abatimento de toda a equipe. Paulo Sousa decidiu mexer. João Gomes e Vitinho nas vagas de Andreas e Everton Ribeiro. Força por dentro, drible e habilidade no lado para tentar furar o bloqueio vascaíno, que já ensaiava novamente a linha defensiva com seis jogadores.
Zé Gabriel e Juninho mantinham a força por dentro para evitar dar espaços como no primeiro tempo. Forçar o Flamengo a girar de um lado a outro, encontrar a dificuldade na linha de seis. Getúlio, com pouca participação ofensiva, foi substituído por Raniel. Zé Ricardo indicava prender um pouco mais a bola no ataque e tentar velocidade em um contragolpe. Não conseguiu. O jogo permaneceu quase em um só tom. Flamengo com a bola, alternando de um lado a outro, sem conseguiu penetrar na defesa vascaína, buscar o fundo do campo. Paulo Sousa tentava dar vida ao time. Com o Vasco mais recuado, pôs Pedro e Rodinei nas vagas de Matheuzinho e Arão. Começava a tentar rechear a área cruzmaltina. Mas o Flamengo talvez pela primeira vez sob seu comando pareceu desorganizado.
Se antes rodava a bola de um lado a outro em busca do espaço, a partir daí alternou entre os passes e bolas longas. David Luiz a Rodinei no lado direito ou grande área. Fabrício Bruno em busca do pivô de Pedro justamente na área. A parte ofensiva estava confusa. Pedro, Gabigol, Bruno Henrique, Vitinho e Arrascaeta não se encontravam e tampouco pareciam ter posições ensaiadas ou definidas. O Flamengo desejava a vitória a qualquer custo, ainda que de maneira desorganizada. O Vasco mantinha a postura apenas com troca de peças. Figueiredo dava novo gás ao lado esquerdo, Sánchez ao lado direito. Da arquibancada vinham os gritos de Marinho e Paulo Sousa parecia resistente. Até que, enfim, entendeu ser o momento.
Sacou Fabrício Bruno, permaneceu apenas com David Luiz como zagueiro de ofício. Abriu Rodinei e Filipe Luís pelos lados. João Gomes à frente para dar a mínima segurança necessária. Arrascaeta solto pelo centro. Nas alas Marinho esticado à direita, Vitinho à esquerda. Por dentro Bruno Henrique, Pedro e Gabigol. A entrada de Marinho reorganizou a ideia ofensiva do Flamengo. Empurrava mais o Vasco ao campo defensivo, que mantinha o cinturão para bloquear as investidas rubro-negras. A dificuldade, no entanto, persistia. Furar a parede cruzmaltina e criar oportunidades claras de gol era tarefa improvável. Marinho recebia a bola à esquerda e tinha o espaço encurtado. Vitinho pela esquerda era melhor opção, na habilidade do mano a mano. No seu 6-3-1, o Vasco voltou a ceder espaços pelo centro como no início do jogo. Erro que seria fatal. Liberdade para que os defensores avançassem com a bola e entregassem.
Especialmente no gol rubro-negro, errou o veterano Nenê. Marinho tentava a jogada da ponta para dentro, de caráter individual. Algo, inclusive, que contraria a ideia de Paulo Sousa. Acabou desarmado por Andrey. Nenê recebeu a bola e em vez de reter a posse, tentar cavar a falta, preferiu tentar um improvável gol de antes do meio de campo ao ver Hugo adiantado. Falhou. Na retomada, o Flamengo voltou ao ataque com enorme tranquilidade. Filipe Luís a Arrascaeta já no campo ofensivo. Dali a Vitinho pela esquerda. Bola de volta a Arrascaeta com liberdade pelo centro. Havia, além do chute, até espaço para Rodinei receber livre à direita. A finalização saiu como uma cópia de uma semana antes, contra o Resende. Um belo gol. 2 a 1.
Uma vitória arrancada com o pior desempenho da equipe sob o comando de Paulo Sousa. Momentos de desorganização, dificuldades para furar o bloqueio rival, mesmo diante de uma equipe com claras limitações técnicas. Abrem-se questionamentos sobre o não aproveitamento, desde o início ou durante a partida, de jogadores como João Gomes, Thiago Maia e Lázaro. Principalmente após uma semana livre de treinamentos. O técnico português parece ter feito a leitura do cenário: era mandatório vencer o rival para comprar dias de trabalho em paz até a semifinal. Da maneira que foi possível, talvez nem mesmo da maneira que gostaria, Paulo Sousa forçou o time à frente com atacantes para buscar o gol redentor. Conseguiu. O desafio agora é retomar a evolução existente até o primeiro tempo contra o Resende.
Do lado vascaíno, Zé Ricardo conseguiu organizar e mobilizar o time de maneira suficiente para um embate digno contra um dos principais times da Série A. Deve ser um espelho para a sequência da temporada, na luta para voltar à elite. Contra outros adversários na Série B, o Vasco necessariamente deverá tomar a iniciativa da partida. Aí o desafio de Zé Ricardo será maior. Um clássico definido no fim, com frustrações de lado a lado. Mas lições foram deixadas no Engenhão se o desejo for absorver.
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 2X1 VASCO
Local: Estádio Nilton Santos, o Engenhão
Data: 27 de fevereiro de 2022
Árbitro: Rafael Martins de Sá (RJ)
VAR: Pathrice Wallace Correa (RJ)
Público e renda: 19.340 pagantes / 20.186 presentes / R$ 691.103,00
Cartões amarelos: Andreas Pereira, Willian Arão, Arrascaeta (FLA) e Juninho, Anderson Conceição, Juan Quintero, Figueiredo (VAS)
Gols: Filipe Luís (FLA), aos dez minutos do primeiro tempo; Gabriel Pec (VAS), aos cinco minutos e Arrascaeta (FLA), aos 43 minutos do segundo tempo
FLAMENGO: Hugo Souza; Fabrício Bruno (Marinho, 37’/2T), David Luiz e Filipe Luís; Matheuzinho (Rodinei, 20’/2T), Willian Arão (Pedro, 20’/2T), Andreas Pereira (João Gomes, 10’/2T), Everton Ribeiro (Vitinho, 10’/2T); Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol
Técnico: Paulo Sousa
VASCO: Thiago Rodrigues, Léo Matos, Juan Quintero, Anderson Conceição e Edimar; Zé Gabriel (Andrey, 29’/2T) e Juninho (Luiz Henrique, 21’/2T); Gabriel Pec (Jhon Sánchez, 29’/2T), Nenê e Riquelme (Figueiredo, 21’/2T); Getúlio (Raniel, 15’/2T)
Técnico: Zé Ricardo