Gabigol Flamengo Racing gol 2020 Libertadores
Libertadores se pelea: mesmo abaixo, Flamengo sustenta empate com o Racing
26 novembro 00:28
Everton Ribeiro gol Flamengo Botafogo Brasileiro 2020
Depois da ressaca, a vitória e o alerta: abaixo do patamar, Flamengo supera Botafogo
06 dezembro 21:49

Geraldo, a bandeira e aquele Maradona

camisas Maradona Copa 2010

Arquivo pessoal

camisas Maradona Copa 2010

Arquivo pessoal

Basta fechar os olhos que a imagem encharca a mente com facilidade, embora há tanto tempo. 30 anos. As chamas lambendo o pedaço de pano costurado em um verde e amarelo, aos poucos transformado em um bolo preto que desmaiou na calçada sob as risadas dos vizinhos. Meus olhos de garoto assustado não entendiam muito bem a graça da turma, mas davam ali a dimensão de como o futebol invadia a vida com uma capacidade de transformar personalidades. Geraldo, sempre sorridente com seus óculos, cabelo já mais para branco do que grisalho, vizinho de frente da casa dos meus bisavós, estava irritado. O sorriso de canto de boca tentava disfaçar. Mas a frase que saía dos dentes semicerrados “Aquele Maradona…” denunciava. E a bandeira verde e amarela queimava. Amor e ódio juntos.

A Copa de 90 fervia nas ruas pintadas. Os muros tinham Careca, Muller, Taffarel. A rua íngreme, típica da cidade serrana, lá para cima contava com um espaço para manobra antes de voltarmos a descer e estacionar em frente ao Geraldo. No muro da manobra, pinturas. Era diferente das outras no mar verde e amarelo. Até havia ali umas camisas brasileiras. Mas um dos rabiscos chamava a atenção. Um baixinho com camisa alviceleste, de costas, número 10. O craque da última Copa. Diego Armando Maradona. Talvez um dos maiores reconhecimentos que um atleta possa ter. Ser pintado em outro país simplesmente por ser quem é. Pois foi aquele baixinho que ciscou entre algumas camisas amarelas e tocou para Caniggia driblar Taffarel, fazer o gol e estragar toda aquela festa. Saí da frente da televisão meio estupefato ao fim do jogo, minutos depois. E me deparei com Geraldo e sua fúria. Ah, aquele Maradona…

Impossível não ser seduzido pelo personagem. Não só pela arte da bola, mas pela intensidade com que levava a vida. Amava e sofria como qualquer um de sua gente. E não se escondia. Ao contrário. Entregava-se, deixava-se exposto aos olhares de fora a seu comportamento mundano demais para quem habitava o Olimpo. Maradona tinha essa habilidade, talvez abaixo apenas da que o fazia conduzir a bola com o pé esquerdo. Mantinha vez e outra os pés no mundo das celebridades, do seu Olimpo, dos corredores luxuosos em eventos da Fifa para, assim que possível, observar uma porta entreaberta de um mundo mais rente ao chão, às suas raízes e escapar rapidamente. Sem vergonha. Chegara lá em cima por mérito. Mas, quando quisesse, poderia sair. Impossível olhar para aquela camisa 10 da Argentina em campo e não lembrar das palavras do Geraldo. “Aquele Maradona…”. 20 anos depois, o encontrei.

Já tinha ido a alguns treinamentos da seleção argentina na cobertura da Copa de 2010, em Pretória, na África do Sul. Diego reinava, controlava acessos, disputava peladas, chamava as câmeras, instruía o ainda garoto Messi. Na véspera das oitavas de final, contra a Nigéria, Maradona obrigatoriamente teria de conceder entrevista. A salinha improvisada, meio escura, com uma luz direcionada apenas para a mesa lembrava o palco de um teatro à espera do seu protagonista. E Maradona assim o era. Dono da cena, do show, pouco importava como. Enchia o ambiente com sua presença. Ele entrou devagar, parecia pouco disposto a falar. Senta-se, ajusta a cadeira. E de repente para. Olha fixo para o fundo. Mão direita sobre o rosto, tenta enxergar à frente, como sempre fez. Com um gesto imprevisível como um drible curto nas canchas argentinas, sobe na mesa. “Salva!”. E pula de cadeira em cadeira até abraçar Salvatore Bagni, seu ex-companheiro dos tempos de Napoli, que também aguardava a entrevista. Na hora lembrei de Geraldo. Esse Maradona…

Há um sentimento de peito cheio ao vivenciar de perto figuras assim. Mudam o mundo, ditam tendências, viram referências. Quase divindade. Quase porque Diego Armando Maradona fascinava também por ser mundano como nós. Gordo e magro. Fraco e forte. Contraditório. No caminhar rumo aos estádios da Copa em jogos argentinos, o mar de camisas 10 com seu nome atrás era simbólico. Toda sua gente ali carregava um pouco de Diego com orgulho. Um espírito de encarar a vida. Verborrágico, debochado, crítico, sofrido, provocador. Capaz de apelidar de La Mano de Dios um dos atos mais profanos no seu Olimpo da bola: fazer um gol com a mão. E depois deleitar o mundo com o mais belo dos tentos das Copas.

De que planeta viniste, afinal? O que seria dele caso não tivesse se entregado tanto aos prazeres da vida? Diego, creio, teria resposta simples e direta. Não seria Maradona. Viveu como queria. E morreu em plena pandemia, forçando sua gente a transgredir regras para celebrá-lo. A adentrar na Casa Rosada e transformá-la numa cancha pulsante. A nos fazer de novo quase admirar o errado, como fez com a própria mão em 86. Este 25 de novembro de 2020 chegaria. Sabíamos. Temíamos. Fingíamos que não. Diego, de novo, foi contraditório. Completou 60 anos para nos obrigar a relembrar tudo que fez. A reverenciá-lo. Para, enfim, se despedir. Mesmo na morte apresentou tanta vida. Fez pulsar a Argentina. O mundo. O seu Olimpo da bola. Em nossas memórias escreveu uma história a cada um de nós. O homem foi. A lenda segue. Ciente de que foi um dos maiores. Fecho os olhos e lembro. Da comemoração furiosa contra a Grécia em 94. Dele em pé na mesa. Dos braços abertos sob o facho de luz na Copa de 2018. Do muro. Da chama acesa na bandeira do Geraldo. Viva. Aquele Maradona…

Os comentários estão encerrados.