De repente a bola ali se oferece destinada à História. Levita. Como quem, travessa, tem o direito de suspender o tempo no toque de cabeça de Keno. O moleque de Xerém vai também determinado. Convicto. Ajeita a passada, a perna. Chute em cheio. Trivela. No canto. Faz explodir o Maracanã. Agita de novo as bandeirolas. Os corações. O sentimento. Verde. Branco. Grená. Olhos esbugalhados, John Kennedy corre sem saber para onde. O destino, claro, é a eternidade. A arquibancada, em transe, se encharca de abraços. Lágrimas. Incredulidade. De gente feliz. Arrebatada. Emocionada. Louca da cabeça. A longa noite de 2 de novembro de 2008, enfim, acabara. A data agora é 4 de novembro de 2023. Para todo sempre. Fluminense 2 a 1 no Boca Juniors. De novo, em pleno Maracanã. Um acerto de contas com a História. Campeão da Libertadores da América.
Um capítulo dourado escrito com letras garrafais na trajetória tricolor. É, desde já, o Fluminense de Fernando Diniz. Nome e sobrenome como são os grandes times. As grandes histórias. De grandes personagens. Como Marcelo. Peça mais renomada no 4-2-3-1 do Tricolor. Lá está ele na lateral esquerda. Multicampeão pelo Real Madrid, cinco Champions. E daí? A Libertadores mexe. Fascina. Seduz. E chacoalha a mente. Os minutos iniciais no Maracanã demonstraram um Camisa 12 nervoso. Errando passes fáceis a ponto de pedir desculpas. Natural. O quanto não passou na cabeça do craque ali no gramado do Maracanã? Diniz optou por Martinelli no meio e segurou John Kennedy no banco. Um meio mais recheado para não ceder tanto espaço ao Boca.
Do outro lado, os argentinos em um 4-4-2 tradicional com Cavani e Merentiel à frente. Estavam até sóbrios no início da partida, aproveitando especialmente a recuperação da bola e no partir pelo meio. Cavani até se enrolou em boa chance ao tentar tocar para trás em vez de finalizar. Diniz, inquieto, passou a trocar as posições das peças. É o que torna seu trabalho fascinante. Não se apega apenas a discursos. Simplesmente os coloca em prática. Busca soluções. Arrisca. Há preços a pagar. E há glórias a conquistar. Marcelo foi liberado para circular pelo campo. Ocupou o meio, a direita. Martinelli fechou o lado esquerdo. Keno alternou da esquerda para a direita. André ocupou o centro com exuberância. O Boca entendeu o maior volume. Deu passos atrás. A torcida tricolor pulsou. As bandeirolas sacudiam. O Fluminense jogava. Queriam ficar loucos da cabeça. Nada mais interessava.
Pois mesmo na loucura do dinizismo há, claro, ordem. Padrões. Cano tornou o sonho da decisão possível com um belo gol na virada épica no Beira-Rio no apagar das luzes. Lance pela direita, toque rasteiro e finalização mortal. E lá estavam Arias, Keno e o toque rasteiro para um Cano certeiro abrir o placar. Duplo L no Maracanã. Explosão. Emoção. 1 a 0. Parecia uma vitória já encaminhada no primeiro tempo tamanha diferenças técnica e tática entre as equipes. Passes curtos reapareceram, um Boca por momentos na roda. Mas é a Libertadores. Havia o que caminhar. Sofrer. Esperar.
O segundo tempo trouxe um Fluminense mais recuado. Campo aos xeneizes. Um passo calculado, mas equivocado. Não só animou o time argentino em campo como inflamou a arquibancada azul e amarela. Diante de tamanha limitação técnica, o Boca dependeria de Cavani ou Barco, ambos em péssima tarde. Achou o gol, então, em uma tentativa de Advíncula. Por duas vezes já havia ensaiado a sorte. Avanço pela direita, corte para dentro e arremate de canhota. Marcelo não fechou e apenas indicou aos companheiros a pressão. Que não chegou. Chapada firme, no canto direito de Fábio. Belo gol. 1 a 1. O Maracanã, de novo, suspenso pelo tempo.
A angústia tomou conta. Natural que o fantasma de 2008 rondasse o ambiente. Humano. Mas Diniz vai além. É diferente porque ousa. Com um jogo já mais difícil, a caminho de prorrogação e, talvez, pênaltis, como arriscar tirar dois jogadores técnicos como Paulo Henrique Ganso e Marcelo e um volante como Martinelli? Diniz arriscou. Ousou. Buscou. O Fluminense vai jogar. E vai contar com o moleque de Xerém. John Keneddy. Inquieto como o técnico. Ansioso. Sedento pela vitória. Falam a mesma língua. Talvez por isso o entendimento. A compreensão. A alma tricolor, de repente, foi revigorada.
E o futebol dá sinais. O moleque que havia marcado nas oitavas, nas quartas e na semifinal fatalmente estava fadado a um papel importante na decisão. Seria estranho se passasse despercebido. Mas passar por um jogo de forma discreta é não ser John Kennedy. 21 anos, comemoração de urso. Sorriso largo, cabelo nevado. O gol perdido de forma inacreditável por Diogo Barbosa no último lance do tempo normal pareceu um recado do destino. A noite seria de John Kennedy. Vamos, tricolores. Chegou a hora. De ganhar a Libertadores.
O chute na bochecha da rede de Romero aconteceu em um momento de um Boca mais presente no campo tricolor. Um desafogo. Não apenas no jogo. Mas na alma. No peito. Na História. A corrida insana do moleque foi não só por ele. Por todos. O ciclo se fechava ali. Se a regra diz que o segundo amarelo deve ser aplicado a quem é o heroi de uma Libertadores inédita e só quer abraçar a sua gente, azar da regra estúpida. De longe, John Kennedy viu Fabra dar um tapa em Nino e o Fluminense segurar o Boca. A arquibancada, em absoluto transe, pulsava. “Sou tricolor, sou tricolor, laiálaiá, laialaiá”. Todos loucos da cabeça. Do corpo. Sem crer. Faltavam poucos minutos pelo fim da uma espera de vida. Por si e por quem esteve em 2008 e já não estava mais ali em corpo.
Quantos tricolores não subiram a rampa do Maracanã na esperança de uma epopeia dessas? Quantos não subiram e ouviram histórias da Máquina dos anos 70? De Washington e Assis? Da barriga de Renato? De Fred? De repente a história ali se materializava. Lendas se criavam. “Vamos tricolores, chegou a hora!”. E estavam determinados a descê-la com histórias para todo sempre sobre John Kennedy, Cano, Diniz, Arias e companhia. “Vamos ganhar a Libertadores!”. O apito final ecoou como um aval ao mar de alegria. Não mais seremos. Somos. Não mais vamos ganhar. Ganhamos. Sonhos realizados. Promessas a cumprir. Lágrimas a escorrer. E falácias a desmontar.
Não que Fernando Diniz precise quando olha no espelho. Ele enxerga o jogo de outra maneira. Vê pessoas em vez de peças. Relacionamentos pessoais em vez de relações de trabalho. Prefere formar o cidadão ao jogador. Uma taça ele já tinha conquistado nos 4 a 1 arrebatadores sobre o Flamengo no Carioca. Precisavam de uma maior? Aí está. Ele não estava em campo daquela vez? Agora estava. Vai seguir errando. Vai seguir acertando. Mas ousa. Pensa diferente. Não é gênio por isso. Apenas tem o seu jeito de lidar com o jogo. Com a vida. Assim pôs o nome na história tricolor. Agora, queiram ou não, é o sobrenome de uma era nas Laranjeiras. O Fluminense de Fernando Diniz. 2008 acabou. A obsessão passou. Em casa, diante dos seus. Contra o Boca. Enfim, a América. Não só vitória. É glória, Fluminense! Eterna.
FICHA TÉCNICA
BOCA JUNIORS 1X2 FLUMINENSE
Data: 04 de novembro de 2023
Árbitro: Wilmar Roldán (COL – Fifa)
VAR: Juan Lara (CHI)
Público e renda: 69.232 pagantes / R$ 31.702.250,00
Cartões amarelos: Cavani, Figal, Langoni (BOC) e Keno, John Kennedy, Nino, Cano (FLU)
Cartões vermelhos: John Kennedy (FLU), aos 11 minutos e Fabra (BOC), aos 21 minutos do primeiro tempo da prorrogação
Gols: Cano (FLU), aos 35 minutos do primeiro tempo; Advíncula (BOC), aos 26 minutos do segundo tempo e John Kennedy (FLU), aos oito minutos do primeiro tempo da prorrogação
BOCA JUNIORS: Romero, Advíncula, Figal (Valdez, 7’/2T PRO), Valentini e Fabra; Pol Fernández, Equi Fernández (Saracchi, Intervalo PRO), Medina (Taborda / Intervalo PRO) e Barco (Langoni, 33’/2T); Cavani (Benedetto, 32’/2T), Merentiel (Janson, 49’/2T’)
Técnico: Jorge Almirón
FLUMINENSE: Fábio, Samuel Xavier (Guga, 39’/2T), Nino, Felipe Melo (Marlon, 6’/2T) e Marcelo (Diogo Barbosa, 34’/2T); André e Martinelli (Lima, 34’/2T); Arias, Paulo Henrique Ganso (John Kennedy, 34’/2T) e Keno (David Braz, 12’/1T PRO); Cano
Técnico: Fernando Diniz